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UM OLHAR AUTO-CRÍTICO DO TRABALHO E DA CLASSE
TRABALHADORA NO BRASIL NO SÉCULO XXI1
Antonio Thomaz Júnior2
Departamento de Geografía. Universidad de Las Palmas de Gran Canaria
Vegueta. Número 10. Año 2008
Anuario de la Facultad de Geografía e Historia
Universidad de Las Palmas de Gran Canaria
ISSN 1133-598X. Páginas 121 a 130
INTRODUÇAO
Nossos estudos nos têm revelado que a sociedade do capital, encimada no ambiente contraditório da reestruturação produtiva, vem sendo modificada intensamente nas últimas décadas. Isso tem atingido duramente a classe trabalhadora, as dimensões objetiva e subjetiva dos trabalhadores e a própria dinâmica geográfica do trabalho, territorialização-desterritorialização-reterritorialização, enquanto movimento contínuo e contraditório de sua (des)realização.
É com as atenções voltadas para esse processo que estamos oferecendo ao debate nossa compreensão da Geografia do trabalho nessa viragem do século XXI, ou o que está se passando com camponeses e operários (rurais e urbanos). Nosso objetivo se completa quando priorizamos colocar em questão os limites teóricos de compreensão da realidade social do trabalho, e mais propriamente a composição da classe trabalhadora, constante e intensamente refeita com base nas atuações dos movimentos sociais em escala planetária.
Diante dessas preocupações, do marco teórico assumidos, nos propomos abordar as mudanças que estão ocorrendo no âmbito do trabalho, considerando, pois, as linhas de expressão do conflito social, que não se restringem apenas ao formato capital x trabalho, mas envolve outras formas de configuração da dominação de classe, que implica novos olhares sobre as delimitações clássicas do que é trabalhar no campo e do que é trabalhar na cidade, sob distintas relações sociais de produção e de trabalho.
Não seria, dessa forma, mero jogo de palavras dizermos que a classe trabalhadora vem sendo profundamente atingida pelos mecanismos dos quais se valem o capital, os Estados nacionais e os setores hegemônicos da burguesia, para a manutenção da extração de valor, de mais valia, da superexploração, às expensas da fragilização, da desrealização crescente e intensa dos direitos sociais conquistados por meio das lutas históricas, do direito ao trabalho, da segurança no trabalho, do direito de greve e tantos outros. (ANTUNES, 1999).
Está-se diante, pois, dos rearranjos da ordem metabólica do capital em nível mundial, que adota as formas e procedimentos derivados/combinados do taylorismo-fordismo para o toyotismo, bem como outras formas de organização do processo de trabalho que impactam diretamente na diminuição do operariado
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industrial tradicional, na expropriação de milhões de camponeses, no aumento crescente da legião de desempregados, na profunda redefinição do mercado de trabalho.
Nos centros urbanos as principais marcas desse processo de reestruturação produtiva do capital se evidenciam no crescimento inaudito da urbanização, seguido das maiores taxas de favelização e de desemprego da população trabalhadora. Nos campos esses fundamentos se expressam em nível mundial de forma também contundente e diferenciada, todavia governados pelo modelo agroexportador dos grandes conglomerados agroalimentares, vinculado aos programas de ajustes estruturais do Banco Mundial (BM), do Fundo Monetário Internacional (FMI), e do regime de livre comércio da Organização Mundial do Comércio (OMC)3 .
É como se o projeto de desenvolvimento tivesse que ser único para o conjunto da sociedade, contanto que seu recorte para o campo fosse afinado aos interesses exclusivos de classe (das classes dominantes nacionais e estrangeiras). Estas, representadas, pois, pelas grandes empresas capitalistas relacionadas ao agronegócio, cujos vínculos se estendem de forma mais ou menos expressiva ao capital industrial (agro-químico-alimentário), capital bancário e financeiro, aos latifundiários e grileiros de terras públicas e devolutas4 .
Assim, a reprodução de formas de produção, como a praticada pelos camponeses, é rechaçada, mesmo que haja determinados interesses econômicos no seu formato estruturado no trabalho familiar, todavia tem seu processo autônomo de geração de renda e de excedentes subordinado aos ditames do capital comercial, financeiro, industrial.
Estamos diante de um fluxo de relações que vincula as mudanças no perfil dos camponeses com a composição em suas fileiras dos operários urbanos e rurais, com suas trajetórias também específicas, as vias de comunicação entre essas frações do universo do trabalho no âmbito de uma realidade que está sendo construída por meio das ocupações de terra , ou da luta pela terra5 e pela Reforma Agrária.
PROCESSO SOCIAL E PLASTICIDADE DO TRABALHO
A questão central permanece: o que entender do constante fluxo, cada vez mais intenso de trabalhadores urbanos que realizam inúmeras tarefas/atividades nas cidades e migram de categorias/corporações sindicais? E ainda, para alguns desses, ou para a maioria dos seus ascendentes que um dia já foram camponeses, e que retornam ao campo, sobretudo via as ocupações de terra, ou ainda as atividades realizadas nos centros urbanos por aqueles que de alguma maneira já estão no campo e retiram parcialmente o sustento de sua família das atividades agrárias?
É como se pudéssemos pensar esse quadro a partir de um movimento de ida e volta: se camponês, se operário. Ou então, a plasticidade do trabalho6, refeita constantemente e lastreada nas mediações que redefinem a (des)realização deste e da classe trabalhadora. Daqui para frente nossa preocupação reside em chamar atenção para o fato de que as pesquisas ou os objetos de pesquisa selecionados pelos pesquisadores, que se identificam com os recortes específicos do trabalho, via de regra não abordam a existência de classe do trabalho no interior da totalidade social do trabalho, da luta de classe.
Para tomarmos um exemplo concreto, se estão abordando situações e realidades específicas dos trabalhadores assalariados: todo esforço converge para esse recorte, sem contar se a opção incide sobre experiências urbanas e rurais, sendo que em algumas situações, outras formas de expressão do trabalho, como os camponeses, nem sequer são consideradas. O mesmo se passa quando estamos diante de estudos e posicionamentos que têm como ponto de referência o campesinato, pois o campo fica restrito a essa forma específica da realidade social, resguardando às formas assalariadas uma segunda ordem de importância. Ou ainda, sintonizadas a menor destaque caso se expressem no urbano, numa clara e inequívoca tomada de posição em favor do campo. Essa primazia equivocada também se expressa para aqueles que se dedicam unilateralmente ao operariado urbano, ou às formas de trabalho assalariado e autônomo nos centros urbanos.
Os interesses corporativos prevalecem e o esvaziamento e neutralização do enfoque de classe são assumidos dessa forma, em favor da concepção estranhada de trabalho, com nítidos conteúdos de individualidade e unilateralidade social, política e ideológica do mesmo. (ALVES, 2000).
O enfoque que oferecemos ao debate prioriza o fluxo de relações que requalifica e redimensiona o trabalho, em suas diferentes formas de externalização. Estamos vinculando esse cenário do trabalho às mudanças no seu perfil, ou seja, em relação aos camponeses, a composição em suas fileiras dos operários urbanos e rurais, com suas trajetórias também específicas, e as vias de comunicação entre essas frações do universo do trabalho e as demais formas de realização no tecido social, no âmbito de uma realidade que está sendo construída por meio das ocupações de terra7, ou
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da luta pela terra e pela Reforma Agrária. Da mesma forma que estamos com as atenções voltadas para os operários urbanos ou para as diversas formas com que o trabalho se realiza nos centros urbanos, sem que a versão assalariada seja a única.
É com base na dimensão da totalidade viva do trabalho e na rica trama de relações que redefine ininterruptamente o trabalho nas suas distintas formas de expressão, que estamos focando nossas atenções para continuar edificando a Geografia do trabalho. Mais ainda, estamos tentando entender os fluxos e as ligações entre as diferentes formas de externalização do trabalho como expressão de sua plasticidade. Assim, nos propomos compreender e debater as contradições presentes no interior da luta de classes, seja nos campos seja nas cidades.
OS ATAQUES DO CAPITAL
A adoção por parte dos Estados, das políticas neoliberais exigidas pelos órgãos de fomento do grande capital, dos setores hegemônicos da burguesia, com freqüência tem utilizado de meios violentos, incluindo o emprego das forças armadas (como os casos da Colômbia, África do Sul, México, Filipinas, Egito); de milícias (Colômbia, Equador, Paraguai, Tailândia), esquadrões da morte, ou pistoleiros (Brasil, Zimbabwe, Indonésia).
Municiado por esses referenciais o capital em nível internacional se propõe:
a) sufocar a resistência dos camponeses, das comunidades nativas, indígenas, pescadores, atingidos por barragens, operários urbanos e rurais, metalúrgicos, desempregados, subempregados, para implementar a expropriação e a sujeição dos camponeses, sendo que ao recriá-los subordina-os com mais intensidade, e no caso dos operários propriamente dito, fragilizá-los no limite da sobrevivência;
b) blindar qualquer forma de acesso à terra que não seja via mercado;
c) deteriorar as condições de trabalho;
d) intensificar as jornadas de trabalho;
e) ampliar os horizontes da adoção da mão-de-obra infantil;
f) desempregar assalariados;
g) precarizar relações de trabalho formais;
h) intensificar as práticas da terceirização e das cooperativas de trabalho;
i) rebaixar salários;
j) destruir as fontes naturais de recursos, causando danos irreversíveis ao meio ambiente e à sociedade, etc.
Em conseqüência, o que se assiste é o crescimento de pobres no campo e nas periferias das cidades, que nessa viragem do século XXI está ainda mais acentuado e mundializado. Os indicadores sociais8 mostram que o número de pobres e famintos nos campos não tem diminuído, e a cada ano aproximadamente 40 milhões de novos pobres e famintos engrossam as estatísticas dos sem trabalho e desempregados. Esse processo revela os seguintes traços comuns em nível mundial: renovação intensa da miséria rural e da miséria urbana, considerando que as pesquisas mostram as correntes migratórias de camponeses desterreados para os centros urbanos, e a manutenção da concentração da estrutura fundiária.
Para o Brasil, esse quadro é também alarmante9, pois a proporção de pobres no campo é mais do que o dobro da existente nas cidades. A manutenção da concentração fundiária no Brasil (Tabela 1) ocupa lugar central para explicar o estágio de miserabilidade e de precarização dos trabalhadores mais empobrecidos e desempregados, nos campos e nas cidades.
A concentração fundiária revela também que o alcance social dimensionado pelo número de pessoal ocupado (Tabela 2), dos estabelecimentos acima de 200 ha (médias e grandes) é irrisório se comparado às pequenas áreas dos estabelecimentos, até 200 ha. Da mesma forma que ao contrário do que se pensa, as médias e grandes extensões de terra não concentram a maior parte das lavouras, o que mostra que o agronegócio e as culturas de exportação não se concentram nessas faixas . Ou seja, as maiores extensões não estão inseridas no circuito produtivo ou estão fora do uso, mais propriamente no aguardo do melhor momento para serem incorporadas ao circuito da especulação/produção, a depender das flutuações das taxas de juros, da demanda pelo bem, e pelo embate político entre latifundiários e trabalhadores Sem Terras.
Essa estrutura agrária solidificada há 500 anos amplifica a pobreza, a mortalidade infantil, o desemprego e a desigualdade social no meio rural, no Brasil. Não obstante, a “modernização” da agricultura apurada nos últimos 30 anos, espelha a performance do setor, especialmente quando se consideram os indicadores econômicos, como PIB e sua participação na balança comercial, enquanto que a maior parte das famílias que vivem no campo encontra-se abaixo da linha de pobreza, à ordem de 5 milhões, e conforme o Censo Demográfico de 200011 , vivendo com menos de dois salários mínimos mensais.
O que mais nos têm interessado é aprofundar as atenções para esse universo de relações que revela o estágio atual da classe trabalhadora, no qual camponeses e operários
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estão sufocados pelas estratégias do capital nessa primeira década do século XXI.
Os exemplos abundam, e poucos argumentos podem sustentar ou defender a suicida equação social que está sendo adotada em todo o planeta, financiada pelos órgãos gestores e de fomento do capital, (OMC, FMI, BM), e enraizados por meio de políticas regionalizadas e específicas como a Política Agrícola Comum (PAC) na Europa, a Farm Bill nos EEUU. No Brasil e na maioria dos países dependentes e refratários dessas políticas centralizadas no projeto de ascensão e mundialização dos grandes grupos agro-químico-alimentares, os mesmos princípios são praticados, fazendo dos campos, dos prados, das matas, das áreas de cultivo, ambientes excludentes da grande maioria dos produtores familiares e camponeses.
Fortemente concentrada nos produtores mais tecnificados, não só internamente aos países centrais, mas sobretudo nos países dependentes e endividados, essas ajudas financeiras produzem estragos incalculáveis, a começar pela expropriação/extinção das explotações e da comunidade de camponeses em todo o planeta. (MAZOYER, 2004).
A um só tempo, por meio dos fundos públicos, fica mais barato produzir na Europa e nos EEUU, sendo que esses excedentes invadem os mercados dos países dependentes, impedindo a competição com os produtores familiares e, por outro lado, também são atingidos os camponeses dos países do norte.
Uma nova geografia do cenário produtivo (produção imediata, distribuição, circulação e consumo) está sendo tecida pelas empresas transnacionais, sendo que para essas é imprescindível manter os mercados abertos por conta da estratégia de expandir seu parque produtivo e interesses estratégicos para os países do sul. Mas, como monopolizam os esquemas de distribuição, ameaçam constantemente os produtores internos, arruinando-os e ultimando-os ao desaparecimento, tanto é que na Europa a cada 3 minutos, deixa de existir 1 camponês.
Da mesma forma que o fechamento de postos de trabalho com vínculo formal nos centros urbanos, com o mínimo de segurança e garantia de direitos se escasseia crescentemente, e o crescimento das formas de trabalho informais, desreguladas, precarizadas e totalmente distanciadas dos expedientes de proteção estatais e públicos, é um excelente indicador dos ataques do capital sobre o trabalho em tempos de “modernidade” tecnológica.
CENTRALIDADE DO TRABALHO E RESISTÊNCIA
A oportunidade de avançar os estudos e investigações sobre a realidade do trabalho é a fonte concreta para atentarmos para a construção/destruição/reconstrução cotidiana dos significados e sentidos territoriais do trabalho nos diferentes lugares.
A reestruturação produtiva do capital produz então, novas fragmentações no interior da classe e, conseqüentemente, novas identidades do trabalho estranhado, bem como atinge expressivos segmentos de trabalhadores vinculados às relações de produção não essencialmente capitalistas. (MÉSZÁROS, 2002). Apesar da sua forma clássica se expressar no assalariamento, também se estende aos trabalhadores por conta própria, para os autônomos, para os camponeses.
Assim, a precarização da força de trabalho (do trabalho vivo) em geral assume formas sócio-histórico-geográficas diferenciadas ao longo do processo de desenvolvimento capitalista.
A título de exemplo poderíamos indicar os trabalhadores de telemarketing, os diTabela
1. Brasil - Estrutura Fundiária, 2003
Estratos de área total - Ha
Nº Imóveis
% dos Imóveis
Área total
% de Área
Área Média
Até 10
1.338.711
31,6
7.616.113
1,8
5,7
De 10 a 25
1.102.999
26,0
18.985.869
4,5
17,2
De 25 a 50
684.237
16,1
24.141.638
5,7
35,3
De 50 a 100
485.482
11,5
33.630.240
8,0
69,3
De 100 a 500
482.677
11,4
100.216.200
23,8
207,6
De 500 a 1000
75.158
1,8
52.191.003
12,4
694,4
De 1000 a 2000
36.859
0,9
50.932.790
12,1
1.381,8
Mais de 2000
32.264
0,8
132.631.509
31,6
4.110,8
Total
4.238.421
100
420.345.382
100
99,2
Fonte: Cadastro do Incra – situação em agosto de 2003
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gitalizadores, os trabalhadores envolvidos na cibernética de modo geral, que em grande medida, se vinculam ao mercado de trabalho na modalidade de subcontratados, terceirizados, ou formas derivadas da informalização.
As repercussões desse processo para o conjunto dos trabalhadores refletem um quadro em que a classe trabalhadora aumentou de tamanho e em quantidade, porém de forma heterogênea, fragmentada e crescentemente precarizada. Mais ainda, diferenciada pelos territórios e lugares, sobretudo nos países onde predominam os baixos índices de proteção social e de políticas sociais mais abrangentes12 .
Assim, na América Latina, África, Sudeste Asiático e mais porções periféricas da Europa e da Ásia Central, nota-se de forma muito mais intensa do que nas outras partes do planeta, de que o trabalho está diminuindo ou está acabando, por meio de afirmações assemelhadas ao fim do proletariado13, fim do trabalho14 e de sua centralidade ou ainda que o ócio protagoniza seu fim derradeiro15 . Essas afirmações amparadas nas realidades européia, nipônica e norte-americana ignoram ou desconsideram a realidade do trabalho em termos planetários e no contexto de sua totalidade viva16, no ambiente propriamente da exploração, fragmentação e precarização que incide sobre contingentes crescentes de trabalhadores em todo o planeta.
Disso poderíamos sintetizar que o trabalho não está acabando, o emprego sim é que está moribundo. O que está em questão é a eliminação/precarização do posto de trabalho com garantias, com reconhecimento dos direitos sociais e trabalhistas, portador de seguridade social e previdenciária, etc.
No âmbito da crítica marxiana à economia política, notamos que, sob a vigência e mando do capital, o trabalho estranhado é por conseqüência, (des)efetivação, (des)identidade, e (des)realização, especialmente nos últimos tempos com a crescente e intensa mobilidade de formas de expressão e de sua plasticidade vivenciadas pelo trabalhador diante dos signos imperantes do século XXI. Mas é também fonte de criação de humanização, é superação/negação e sua própria emancipação, o que nos permite pensá-lo como revolucionário17 e como emancipador de fato.
Se não entendemos esse processo pelo viés da dialética existente entre negatividade/positividade e, por via de conseqüência, a potência emancipadora do trabalho, que ao negar a sociedade do capital se afirma enquanto ator-sujeito transformador, não nos será possível defender sua centralidade como pressuposto para a construção de uma sociedade anticapital.
Então, se abstraímos do contexto em foco o conteúdo e as contradições da lógica metabólica do capital, e as dimensões ocultas do processo em que as riquezas produzidas pelo trabalho aparecem como produto do capital, e que nessa relação o trabalho concreto se transforma em trabalho abstrato (parte do trabalho coletivo, social), nos resta propormos avaliações parciais e desconectadas da totalidade. (MARX, 1974).
Seria impossível conceber a eliminação do trabalho, ou até em certo limite a classe trabalhadora, enquanto vigorarem os elementos constitutivos da estrutura societária do capital e a vigência do valor trabalho.
A centralidade ontológica do trabalho, evidentemente, não significa que sua morfologia não tenha se alterado profundamente na sociedade contemporânea. (ALVES, 2000). Ao contrário, temos sim que apreendermos as alterações, mas é preciso que não percamos de vista, entre outras coisas, que o abandono da centralidade do trabalho para a explicação da sociedade contemporânea implica também o abandono da teoria do valor-trabalho. É com base na preocupação de apreender as mudanças que estão modificando os conteúdos do trabalho e suas formas de externalização que estamos fundamentos nossas investigações.
Podemos dizer que apostar na infertilidade da não centralidade do trabalho, ainda que 2/3 da humanidade viva o flagelo da precarização, da exclusão, e de todas as formas de subordinação/dominação/expropriação/sujeição, do desemprego, é o mesmo que não conseguirmos ir além do visível, ou apostarmos na incapacidade de apreendermos as
Tabela 2. Brasil - Estabelecimentos e Pessoal Ocupado por Estrato de Área
Tipos
Numero%
Área (ha)
Pessoal
Empregado
Terras c/
Lavouras
Pequenas
93,8
103 mil (29,2%)
87,3 (%)
53%
Médias
5,3
130 mil (36,6%)
10,2%
34,5%
Grandes
0,5
120 mil (34,2%)
2,5%
12,5%
Fonte: IBGE, 1996
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contradições objetivas e subjetivas da estrutura social.
LIMITES E ENTRAVES
Os desafios estão postos, e para nós o mais importante é assumir que há limitações teóricas de elevada monta para entendermos o que está se passando no interior da classe trabalhadora, especialmente no Brasil.
Assim, tendo em vista que uma das conseqüências imediatas da extensão da lei do valor é acelerar a dissolução das comunidades e sociedades que produzem em conformidade com o valor de uso (concreto) ou ao autoconsumo, como é caso do campesinato, entendemos que se faz necessário ampliar os horizontes dos significados, tanto de trabalho (como categoria marxiana) quanto da classe trabalhadora. É no interior dessas contradições que se refaz cotidianamente a plasticidade das diferentes formas de expressão do trabalho humano. É nessa urdidura que compreendemos as múltiplas determinações da totalidade social do trabalho, com destaque, pois, para o papel da experiência18 na compreensão das contradições do processo histórico.
Se não considerarmos as diferentes formas de expressão do trabalho que ultrapassam as demarcações preconcebidas, se nos campos ou se nas cidades não nos é possível compreender os fenômenos que estão na base das mudanças da classe trabalhadora, tampouco os novos enfrentamentos e desafios para a construção de referenciais anticapital.
Tampouco podemos apreender a espacialidade dos novos territórios em conflito, se também fundamos o conceito de classe trabalhadora a priori, ou seja, desvinculado do real significado da compreensão de classe ou da subjetividade de classe do trabalhador. Não há um destino predefinido para o campesinato e para o proletariado, sendo esse, pois, delineado por meio das contradições imanentes do processo histórico e, por via de conseqüência, pelas posições que defende no âmbito das lutas.
A título de exemplo, quando consideramos o camponês nesse processo, temos que ultrapassar os limites da questão agrária, entendida como algo restrito às relações agrárias propriamente, como vimos defendendo em nossas trabalhos19. Isto porque cada vez mais se complexificam os fluxos e as contradições entre o campo e a cidade do ponto de vista das formas de realização do trabalho, das ações políticas e do conflito de classe, tendo em vista que o capital controla esse processo e o intensifica aos moldes da sua reprodução ampliada e dos mecanismos de controle dos conflitos de classe.
Portanto, seja camponês, seja operário ou qualquer outra expressão de conteúdo e sentido laboral, a identidade de classe do trabalhador se dá no processo de luta e de enfrentamento de classe com o capital, com a burguesia e setores hegemônicos. Podemos dizer ainda que a rigidez dos modelos e esquemas interpretativos não pode prevalecer sobre o fenômeno histórico que se propõe teorizar e entender. As formulações predefinidas refutam o processo histórico empírico real de formação das classes.
As classes sociais não existem como entidades separadas que olham ao redor, localizam um inimigo de classe e travam a batalha. Não devemos falar de classe sem que essas pessoas em meio a outros grupos, diante da luta, inclusive em seu aspecto cultural, entrem em relação e em oposição do ponto de vista classista, ou ainda que modifiquem as relações de classe já existentes. Resulta então que, uma classe não pode existir sem consciência de si mesma, ou então não é ainda uma classe social. (THOMPSON, 1997).
Então, se ficarmos presos às determinações do trabalho estranhado e dos códigos de leis que espelham a divisão técnica do trabalho no plano organizativo/institucional, tal como a representação/organização sindical e os desdobramentos para as demais formas organizativas dos movimentos sociais, não estaremos acrescentando contribuições ao debate.
Dessa forma, a realidade do trabalho não é estática, mas dinâmica, e revela os conteúdos contraditórios dos conflitos e nos oferece as pistas para a não aceitação mecânica dessa condição. É por essa via que buscamos os elementos e as pistas para apreender e compreender a luta dos trabalhadores, (sindicatos, associações, cooperativas, movimentos sociais) e da classe trabalhadora contra as práticas de subordinação, exploração e dominação do operário, e também da expropriação do camponês, bem como a sujeição da renda da terra pelo capital (empresas agroindustriais, agroalimentárias, bancos).
Assim, atribuir o termo classe a um grupo privado de consciência de classe, ou de cultura de classe, e que não atue nessa direção é um posicionamento vazio de sentido e de significado. Até porque a classe se delineia de acordo como os homens e as mulheres experimentam relações de produção e segundo as situações determinadas no interior das relações sociais e como se apropriaram dessas experiências em nível cultural.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
E o que dizer, então, dos pressuposISSN
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tos do marxismo ortodoxo que assevera ser somente a classe operária a encarregada de libertar os trabalhadores do jugo do capital, tendo em vista internalizar a radicalidade de somente possuir a força de trabalho e, portanto, de manifestar oposição radical ao capital? Insistimos, mais uma vez, que diante do quadro social do universo do trabalho, da dinâmica do conflito e da própria práxis da luta de classes, que poderemos compreender as contradições do tecido social. Do contrário, ficaremos de costas para o processo social como um todo e para as exigências e desafios do contexto histórico e, em decorrência, eternizaremos as referências teóricas, políticas e ideológicas que não nos permitem entender/intervir na raiz do conflito de classe de agora, da primeira década o século XXI.
Com isso, estamos colocando em questão a asfixia em que se encontra a ortodoxia marxiana, que blinda a oxigenação da teoria para preservar a formulação original, negando a própria dialética e as limitações ideológicas e políticas que devem e podem ser repensadas e reformuladas. Ou seja, na prática as expressões vivas da luta de classes que apresentamos, vêm mostrando que as fronteiras e as fragmentações da teoria e das ideologias engessadas nas formulações do século XIX precisam ser revistas. Mais ainda, o intemperismo do processo social está freando os avanços requeridos pelos trabalhadores portanto, é necessário que sejam “checadas” no ninho.
Esse quadro se complexifica ainda mais quando se define a priori os elementos avaliativos gerais e específicos para classificar/enquadrar determinadas especificidades vividas pelas diferentes condições de trabalho e de vida dos trabalhadores nessa viragem do século XXI. Os nexos de convivência no âmbito do trabalho estranhado perdem-se, e com ele a necessária compreensão interativa entre os reais significados desse processo para a classe trabalhadora, quando não se considera o fluxo constante e contraditório das formas geográficas de externalização do trabalho. De fato, esse processo não tem sido entendido porque os instrumentos teórico-conceituais estão distantes da práxis histórica, social e concreta do trabalho.
Entendemos ser de suma importância apresentarmos essas idéias para o debate público, para qualificarmos nossa compreensão sobre o conflito irreconciliável entre capital e trabalho. É imprescindível apostar na resistência e na busca de alternativas direcionadas para a construção da autonomia dos trabalhadores, para além do capital.
Daí que a construção teórica do conceito de classe trabalhadora comparece como um dos nossos objetivos, e produto das contribuições que estamos colhendo das pesquisas, e dos aprendizados individuais e coletivos em curso. Estamos seguros de que a classe trabalhadora nesse início do século XXI, só poderá ser entendida se formos capazes de enxergar o movimento de (des)realização do trabalho que (re)qualifica a plasticidade constantemente refeita e toda a ordem de fetiches que lhe é intrínseca, nessa ou naquela condição, tempo e lugar.
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Notas
1 Esse texto é produto das investigações que vimos realizando nos últimos anos através dos projetos de pesquisa sob nossa responsabilidade e coordenação/orientação. Assim, as reflexões que estamos oferecendo ao debate público são parte de dois projetos de pesquisa: 1) “Reestruturação Produtiva do Capital no Campo e os Desafios para o Trabalho”, em nível de pós-doutorado, realizado junto à Universidade de Santiago de Compostela (Espanha), com o apoio do CNPq, durante o período de outubro de 2004 a setembro de 2005 e; 2) “Território mutante e fragmentação da práxis social do trabalho”, PQ/CNPq (em vigência), que referencia o conjunto das investigações no âmbito do CEGeT.
2 Professor dos cursos de Graduação e de Pós-Graduação em Geografia/FCT/UNESP/Presidente Prudente; coordenador do Grupo de Pesquisa “Centro de Estudos de Geografia do Trabalho” CEGeT (www.prudente.unesp.br/ceget); pesquisador do CNPq; autor dos livros “Por trás dos canaviais os nós da cana”. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2002; “Geografia Passo-a-Passo”. Santiago de Compostela: Editorial Centelha, 2005 e; Geografia e Trabalho no Século XXI (volumes I e II). Presidente Prudente, Editorial Centelha, 2004 e 2006. E-mail: thomazjrgeo@fct.unesp.br
3 Cf. THOMAZ JR., 2007.
4 Por meio do projeto de pesquisa “Agronegócio e conflito pela posse da terra em São Paulo: A dinâmica territorial da luta de classes no campo e os desafios para os trabalhadores”, financiado pela FAPESP, estamos tentando compreender o conteúdo das ações do capital agroindustrial canavieiro e a legitimação das terras devolutas que poderiam estar sendo objeto de Reforma Agrária e que trocam de mãos, agora sobre o controle da burguesia agroindustrial, em detrimento dos assentamentos de trabalhadores sem terra.
5 Aqui não nos dedicaremos às ações específicas dos trabalhadores Sem-Teto, ou da luta pela terra nas cidades.
6 O conceito de plasticidade do trabalho vem sendo cunhado nos nossos textos. Mais detalhes, ver: Thomaz Jr., 2006a e 2006b.
7 Aqui não nos dedicaremos à temática das ações específicas dos trabalhadores Sem-Teto, ou da luta pela terra nas cidades.
8 Cf. ONU, 2004.
9 Segundo informações oficiais e amplamente divulgadas pela imprensa, em 2003, 54 milhões de brasileiros eram pobres, e viviam com renda familiar per capita de até ½ salário mínimo (R$120,00); 22 milhões de indigentes, com renda domiciliar per capita de até ¼ do salário mínimo (R$60,00); 1% dos brasileiros mais ricos (1,78 milhão de pessoas), apropria-se de 13% de toda a renda gerada, sendo que os 50% mais pobres (89 milhões) detêm somente 13% da renda.
10 Esse assunto foi aprofundado por Oliveira, 2003.
11 Cf. IBGE, 2000.
12 A esse respeito, Antunes (1999, 2005) apresenta reflexões de longo alcance teórico e explicativo do processo recente de transformações que recaem sobre o mundo do trabalho e que lhe permite indagar seus sentidos, nessa viragem do século XXI.
13 Cf. GORZ (1996).
14 Cf. KURZ, 1996.
15 Cf. DE MASI, 2001.
16 Entendemos como sendo o conjunto dos homens e das mulheres que vivem da venda de força de trabalho (MÉSZÁROS, 2002), e acrescentamos os que se dedicam às demais atividades laborativas, por conta própria, informais, autônomos, camponeses, mas que se identificam ideologicamente no âmbito da classe trabalhadora. Portanto não se trata apenas de uma forma de agrupar os diversos exemplares da classe operária (dos proletários do fordismo), mas de compreender o trabalho na sua dimensão viva, constantemente refeita e presente nas diferentes expressões de sua plasticidade .
17 Aqui demarcamos uma discordância com Kurz, em “Manifesto Contra o Trabalho” (1998), tendo em vista limitar sua compreensão do trabalho somente enquanto desrealização.
18 Cf. THOMPSON, 1997.
19 Cf. THOMAZ JR., 2001.
ISSN 1133-598X · Vegueta·10/08 · página 129
V
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