Anuario de la Facultad de Geografía e Historia
ISSN: 1133-598X
8
Las Palmas de Gran Canaria
2004
EDITOR
Servicio de Publicaciones y Producción Documental
de la Universidad de Las Palmas de
Gran Canaria
CONSEJO DE REDACCIÓN (ULPGC)
Mª de los Reyes Hernández Socorro (Directora);
Agustín Naranjo Cogala (Secretario); Alejandro
González Morales; Sebastián Hernández
Gutiérrez; José Alberto Bachiller Gil;
Ramón Díaz Hernández; Luis Hernández Calvento;
Juan Sebastián López García; Elisa
Torres Santana; Germán Santana Pérez; Javier
Márquez Quevedo; Luis Miguel Pérez Marrero;
Manuel Ramírez Sánchez (Vocales)
CONSEJO ASESOR
Antonio Bethencourt Massieu (UNED); Ciro
F. S. Cardoso (U. Federal Fluminense); Francisco
Comín Comín (U. de Alcalá); Heriberto
Cruz Solís (U. de Guadalajara); Carmen Fraga
González (U. de La Laguna); Francisco M.
Gimeno Blay (U. de València); Horst Pietschmann
(U. Hamburg); Carlos Reyero Hermosilla
(U. Autónoma de Madrid); Reinaldo
Rojas (U. Pedagógica Experimental Libertador);
José Manuel Rubio Recio (U. de Sevilla)
Abdellah Salih (Centre des Etudes Historiques
et Environnementales, Institut Royal de
la Culture Amazighe); Mauro S. Hernández
Pérez (U. de Alicante); Carlos Martínez Shaw
(UNED); Ramón Pérez González (U. de La
Laguna); Pere Salvà Tomàs (U. de les Illes
Balears); Jean Stubbs (U. London Metropolitan);
Armin U. Stylow (Kommision für Alte
Geschichte und Epigraphik, Deutsches
Archäologisches Institut)
CORRESPONDENCIA
Revista Vegueta. Universidad de Las Palmas
de Gran Canaria. Facultad de Geografía e
Historia. C/Pérez del Toro, s/n. E-35003 Las
Palmas de Gran Canaria.
revistavegueta@ulpgc.es
RESPONSABLE DE REDACCIÓN
Página web de la revista: Manuel Ramírez
Sánchez
INTERCAMBIO
Universidad de Las Palmas de Gran Canaria
Servicio de Publicaciones. Avda. Marítima
del Sur s/n. Edif. Anexo a La Granja. Tlfno:
+34 928 45 2707. Fax: +34 928 45 8950.
serpubli@ulpgc.es
REALIZACIÓN
Servicio de Publicaciones de la Universidad
de Las Palmas de Gran Canaria
VENTA
La Tienda ULPGC. Edificio de las Instalaciones
Deportivas. Campus Universitario de
Tafira. 35017 Las Palmas de Gran Canaria.
Tlfno: 928 458629. Fax: 928 457349.
tienda@ulpgc.es
Vegueta. Anuario de la Facultad de Geografía e Historia es una publicación científica de periodicidad
anual, editada por la Universidad de Las Palmas de Gran Canaria, que publica artículos inéditos
sobre Historia, Geografía e Historia del Arte, una vez superan un proceso de evaluación anónimo
por expertos externos. Vegueta se publica anualmente desde 1992 y está referenciada en el Índice
Español de Ciencias Sociales (ISOC) y en DIALNET. Mantiene intercambios con todas las publicaciones
nacionales e internacionales de dichas especialidades que lo soliciten.
ISSN: 1133-598X Depósito Legal: GC xxx-2004
Impresión: Cometa
ANUARIO DE LA FACULTAD DE GEOGRAFÍA E HISTORIA
Número 8
Las Palmas de Gran Canaria 2004
Vegueta. Anuario de la Facultad de Geografía e Historia está disponible en Internet:
www.webs.ulpgc.es/vegueta
ARQUITETURA RURAL E PAISAGENS CULTURAIS NO
BRASIL A PARTIR DE UMA ABORDAGEM
TRANSDISCIPLINAR E DA VISÃO DE PROCESSOS
ANDRÉMUNHOZ DEARGHOLLO FERRÂO
Universidade Estadual de Campinas
Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo
argollo@fec.unicamp.br
VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X 133
BIBLID 1133-598X (2004) p. 133-148
Resumen: Este articulo presenta, a
partir de una abordaje transdisciplinary de
la visión de procesos, el arquitectura rural
como un campo de investigación intrínseco
y necesario a: el concepción y análisis
de emprendimentos sustentables; el
ordenación territorial a partir del rescate
de la memoria y de los valores de una comunidad;
el desarrollo de proyectos destinados
a la valoración de las paisajes culturales
vinculadas a la agricultura o al
mundo rural de un país o región. Presenta-
se para el caso brasileño, la arquitectura
resultante de la dinámica del complexo
productivo del café,y las respectivas
repercusiones sobre el territorio de la
provincia de São Paulo. Preséntase, además,
un método de abordaje para investigaciones
sobre el desarrollo rural sustentable,
y se hace el sugerencia de que
el mismo enfoque adoptado para el caso
del café en Brasil pueda ser adecuado
para las investigaciones a respecto de arquitectura
rural (y de las paisajes culturales
relacionadas a ella) a partir de otros
productos agro-industriales y otros contextos
culturales. Finalmente, se hace la
sugerencia de que la arquitectura rural, así
como las investigaciones sobre las paisajes
culturales vinculadas a ella, deban, necesariamente,
continuar siendo conducidas
a partir del enfoque transdisciplinar
y de la visión de procesos.
Palabras-clave: arquitectura rural,
paisajes culturales, patrimonio cultural,
ordenación territorial, desarrollo sustentable,
turismo rural.
Resumo: Este artigo apresenta, a
partir de uma abordagem transdisciplinar
e da visão de processos, a arquitetura rural
como um campo de estudos intrínseco e
necessário à concepção e análise de empreendimentos
sustentáveis; à ordenação
territorial a partir do resgate da memória
e dos valores de uma comunidade; ao
desenvolvimento de projetos destinados
à valorização das paisagens culturais
vinculadas à agricultura ou ao mundo
rural de um país ou região. Apresenta-se
para o caso brasileiro, a arquitetura
resultante da dinâmica do complexo
produtivo do café, e as respectivas
repercussões sobre o território do estado
de São Paulo. Apresenta-se um método de
abordagem para estudos sobre o desenvolvimento
rural sustentável, e sugere-se
que o enfoque adotado para o caso do café
no Brasil possa ser adequado ao estudo da
arquitetura rural (e das paisagens culturais
relacionadas a ela) a partir de outros
produtos agroindustriais e outros contextos
culturais. Salienta-se, por fim, que
a arquitetura rural, assim como os estudos
sobre as paisagens culturais vinculadas a
ela, devam, necessariamente, continuar
sendo realizados a partir do enfoque
transdisciplinar e da visão de processos.
Palavras-chave: arquitetura rural,
paisagens culturais, patrimônio cultural,
ordenação territorial, desenvolvimento
sustentável, turismo rural.
Abstract: This paper presents rural architecture
as a discipline which must be
studied from a specific viewpoint: process
and transdisciplinar vision. This approach
is absolutely necessary when the rural
landscapes and the agricultural activities
are in focus. The regional planning, including
management and cultural landscapes
projects, maintain a straight relationship
with rural architecture when productives
processes are analyzed. This approach
is also important when a regional
planning is based on cultural heritage.
The Brazilian coffee productive process
was presented like a case. The “architecture
of coffee” in São Paulo state is presented.
This method can be used to analyze
cultural landscapes based on rural architecture.
All of the agribusiness commodities
can generate a specific rural architecture
and this is an important element to characterize
its respective cultural landscapes.
The conclusion indicates that this kind of
studies must be done with similar approach.
Key-words:rural architecture, cultural
landscapes, cultural heritage, regional
planning, sustainable development, rural
tourism.
134 VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X
André Munhoz de Arghollo Ferrâo
Arquitetura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de uma abordagem transdisciplinar...
1. ESTUDOS SOBRE ARQUITETURA
RURAL NO BRASIL
Os estudos sobre arquitetura rural no
Brasil têm evoluído nos últimos anos de
acordo com a lógica das intensas mudanças
por que passa o ambiente rural do País.
Normalmente, ao se enfocar a arquitetura
rural, remete-se logo à idéia de uma paisagem
singela, composta por pequenos
sítios ou enormes glebas sem a necessária
infra-estrutura física capaz de dotar o
território de elementos que otimizem a
produção agropecuária e ao mesmo tempo
a qualidade de vida dos trabalhadores e
empresários rurais.
No entanto alguns pesquisadores têm
enfocado a arquitetura rural como um
campo de estudos absolutamente fundamental
para o desenvolvimento sustentável
do País. Esta postura acadêmica é
relativamente recente, intensificando-se a
partir da última década.
A paisagem rural brasileira, com seu
imenso patrimônio cultural, confere aos
estudos sobre arquitetura rural uma dimensão
sócio-econômica importante. Os
edifícios destinados à produção agroindustrial
compõem uma notável arquitetura
agrícola ou, a arquitetura (da produção)
rural abrangendo, inclusive,
construções específicas de processos de
produção agrícola instalados em cidades
ou regiões metropolitanas (ARGOLLO
FERRÃO, 2003a).
Ao se estudar arquitetura rural sob o
enfoque transdisciplinar e a visão de processos,
há que se enfocar o planejamento do
espaço físico (especialmente o espaço produtivo)
das propriedades agrícolas, e os
valores que se pode adicionar aos processos
de desenvolvimento rural sustentável de um
País ou uma região. Há que se adotar
unidades de análise e/ou planejamento
distintas por suas características ecológicas,
econômicas, ou culturais. Por exemplo:
• as micro-bacias hidrográficas como
unidades de análise ou planejamento
integradas do ponto de vista ecológico;
• determinadas regiões dedicadas à
produção de café (ou a algum outro
processo agroindustrial) como unidades
de planejamento integradas por suas
características econômicas;
• regiões históricas, repletas de tradições
culturais, ou dedicadas a produtos
típicos fortemente vinculados ao território
onde são produzidos, a ponto de
caracterizarem sua paisagem e serem
reconhecidos por ela, numa relação
intrínseca entre processo produtivo e
organização territorial, podem ser consideradas
como unidades de análise ou
planejamento integradas por suas
características culturais.
As três situações descritas acima
compreendem elementos necessários à
caracterização das paisagens culturais das
diversas e heterogêneas regiões agrícolas
brasileiras, sendo todas elas, objeto de
estudos da arquitetura rural.
As correlações entre as técnicas
empregadas em determinados processos
produtivos com a arquitetura dos respectivos
espaços de produção são fundamentais
para a compreensão das paisagens
culturais da região em foco. As
múltiplas interfaces e seu papel no
chamado “sistema cidade-campo”, elevam
a arquitetura rural a uma privilegiada
condição de disciplina de integração entre
o território e o complexo sistema científico,
tecnológico e informacional de que se
compõe o agribusiness de um país ou uma
região.
Nas principais regiões agrícolas do
Brasil, a intensa especialização dos processos
de produção agroindustrial vem
modificando a arquitetura rural. Muitas
cidades onde tais unidades de produção se
situam, passaram a abrigar uma arqui-
VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X 135
André Munhoz de Arghollo Ferrâo
Arquitetura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de uma abordagem transdisciplinar...
tetura complexa e específica, repleta de
edifícios e instalações apropriados às
diversas atividades do chamado agribusiness,
como armazéns e silos de grande
porte, terminais intermodais, etc. Já o
espaço produtivo das fazendas normalmente
abrange edifícios destinados à
produção agroindustrial, projetados e
construídos conforme as necessidades do
processo a que se destinam. Nas regiões
agrícolas mais desenvolvidas, o altíssimo
nível científico e tecnológico da agricultura
exige uma infra-estrutura física resultante
de projetos específicos de engenharia e
arquitetura rural.
As pequenas propriedades dedicadas à
agricultura familiar, por sua vez localizadas
em regiões menos desenvolvidas
ou ambientalmente protegidas, também
constituem universo de valiosos estudos
sobre arquitetura rural. Nessas regiões há
que se levar em conta a possibilidade do
emprego de materiais alternativos e
processos simplificados, eficientes do
ponto de vista ecológico e econômico, de
baixo custo e fácil manutenção.
2. ARQUITETURA RURAL: CARACTERIZAÇÃO
E VALORIZAÇÃO DAS
PAISAGENS CULTURAIS
Entendemos a arquitetura rural como
uma disciplina transdisciplinar, integradora
dos campos da arquitetura e ciências
agrárias, abrangendo as correlações entre
todos os elementos arquitetônicos, estruturais
e ambientais referentes aos vários
segmentos da engenharia, co-existentes na
paisagem rural em que estão inseridos:
• A habitação rural: sedes de propriedades
rurais, casas de trabalhadores, conjuntos
habitacionais rurais implantados em
bairros ecológicos situados nas franjas
urbanas das regiões metropolitanas, em
agrovilas ou ecovilas adequadamente
projetadas, condomínios e assentamentos
rurais de diversa índole, etc.;
• A arquiteturaagrícola:edifícios destinados
à produção agrícola, tais como engenhos,
casas de máquinas, terreiros de secagem,
viveiros e casas de vegetação, instalações
e equipamentos de produção agroindustrial,
laboratórios, e os diversos
tipos de edificações apropriadas às
cadeias de produção animal, etc.;
• A arquitetura agro-ecológica: arquitetura
específica da lavoura, das pastagens, dos
próprios seres vivos (animais e plantas)
geneticamente selecionados ou modificados,
dos bosques naturais e artificiais,
jardins, pomares, etc.;
• O patrimônio cultural rural: elementos
arquitetônicos e agro-ecológicos componentes
do fabuloso patrimônio cultural
existente no meio rural, tais como
antigos casarões e senzalas, colônias e
casario disperso, monumentos construídos
com técnicas tradicionais da
arquitetura rural ou com materiais e
técnicas alternativas de construção; toda
a arquitetura vernacular que possa estar
presente no espaço rural, antigas capelas
rurais, antigos engenhos e casas de
máquinas, o próprio maquinário desativado,
antigos equipamentos de produção
de energia (monjolo, rodas d’água,
etc.), estruturas desativadas (como
pontes, diques e barragens), o espaço
físico destinado às manifestações culturais
locais (praças, terreiros, largos,
vilarejos, etc.), enfim, todo o ambiente
construído que conforma o imenso
patrimônio cultural rural;
• A infraestrutura física: elementos da
engenharia rural, tais como os caminhos
e estradas de terra ou calçadas, barragens
e sistemas de irrigação, pontes, poços,
obras de arte da engenharia, obras
hidráulicas e áreas de represa, lagos, rios,
córregos e riachos, fontes e nascentes,
136 VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X
André Munhoz de Arghollo Ferrâo
Arquitetura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de uma abordagem transdisciplinar...
elementos dos sistemas de eletrificação
rural, sistemas de engenharia destinados
à otimização da produção agrícola,
construções diversas, o imenso patrimônio
da engenharia, etc.;
O planejamento da produção e a gestão
de serviços integrados em unidades
regionais definidas por micro-bacias
hidrográficas constituem o método de
abordagem mais adequado, pois abrange
todas as possíveis correlações nos diversos
âmbitos da arquitetura rural: planos de
produção e comercialização agrícola e de
serviços não agrícolas; manejo dos recursos
naturais, principalmente os recursos
hídricos e florestais; ordenação territorial,
planejamento ambiental e agro-ecológico;
e políticas de desenvolvimento rural
sustentável, incorporando modelos de
gestão local, educação, assistência técnica,
pesquisa e extensão baseados em conceitos
de sustentabilidade e eco-eficiência.
Do ponto de vista da arquitetura rural, a
permacultura e o conjunto de técnicas de
construção e de produção sustentáveis
indistintamente utilizadas no campo (advindas
da cidade) ou na cidade (advindas
do campo) contribuem para o desenvolvimento
de regiões marcadas pela
agricultura familiar, e assentamentos de
trabalhadores sem terra, pois dependem
de menor aporte de capital.
O papel da arquitetura rural como
elemento de resgate e valorização da
memória e cultura locais é fundamental
para um desenvolvimento rural sustentável,
uma vez que se caracteriza como
base para o reconhecimento e análise da
paisagem cultural de uma determinada
região.
A valorização dos recursos locais
vinculados ao patrimônio cultural constituise
em ponto de partida de inúmeros planos
de desenvolvimento regional que obtiveram
sucesso na Europa e nos Estados
Unidos (SABATÉ & SCHUSTER, 2001).
Pode-se dizer que o patrimônio industrial,
agrícola, e natural, correlacionando locais
cívicos e religiosos, eventos e festivais
tradicionais, sítios e memória da
engenharia, além da memória dos produtos
e processos típicos (agricultura, artesanato
e indústrias locais), e a própria cultura
popular, caracterizam-se como elementos
de valor intrínseco ao desenvolvimento
sustentável de uma região deprimida ou
estagnada econo-micamente.
Nos últimos 20 anos, percebe-se em
várias regiões do interior do Brasil que as
áreas rurais não estão mais sendo utilizadas
apenas para atividades agropecuárias ou
extrativistas. Atividades econômicas
alternativas, de cunho cultural e ecológico,
como o turismo e o lazer mostram-se cada
vez mais atraentes para os proprietários
rurais. O repovoamento do espaço rural
apresenta-se como alternativa viável e
necessária frente aos problemas cada vez
mais complexos causados pelo intenso
processo de metropolização que ocorre nas
regiões mais desenvolvidas do País.
Por outro lado, é grande o número de
proprietários rurais e trabalhadores sem
terra que não têm acesso ao desenvolvimento
científico e tecnológico do
setor agroindustrial brasileiro. A diversidade
é uma característica marcante do
País. É possível encontrarmos numa mesma
região, arquiteturas distintas voltadas a
processos produtivos contex-tualizados
por lógicas distintas: desde o mais avançado
estágio de desenvolvimento científico e
tecnológico até o mais primitivo contexto
rural. Em ambos os casos, os valores
culturais estão presentes e podem ser
facilmente reconhecidos, de maneira a
imprimir na paisagem marcas indeléveis
originais de cada região.
VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X 137
André Munhoz de Arghollo Ferrâo
Arquitetura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de uma abordagem transdisciplinar...
3. ARQUITETURA RURAL SOB O
ENFOQUE TRANSDISCIPLINAR
A arquitetura rural brasileira possui
dois aspectos marcantes: é complexa e
diversa, pois diversos são os aspectos
pertencentes ao mundo rural, entendidos
a partir de conceitos advindos de fontes
distintas, sob a visão de processos e o
enfoque sistêmico, e pertencentes aos
campos da arquitetura e urbanismo,
geografia, história, economia, administração,
sociologia, antropologia, turismo,
artes e cultura popular, engenharia agrícola,
agronomia, zootecnia, medicina
veterinária, engenharia civil, engenharia
da produção, engenharia ambiental, etc.,
além de outras fontes de conhecimento que
direta ou indiretamente compõem o
universo que abrange o ambiente rural.
As chamadas fontes de conhecimento
não-científico (por exemplo: lendas, mitos,
costumes, know-how popular, artesanato,
etc.) adquirem neste caso valor e peso
significativo pois advém da cultura local, e
constituem agentes dinâmicos que imprimem
personalidade e distinção à região
enfocada. São os casos das diversas festas
e eventos baseados nas tradições populares
que atraem para determinados municípios
recursos e investimentos por meio de fluxos
sazonais de turismo e empreendimentos
sustentáveis relacionados com a cultura
local.
Quando se admite o caráter transdisciplinar
no estudo de algum fenômeno, há
que se aceitar o conhecimento advindo de
fóruns não acadêmicos.
Ao tratar a questão da transdisciplinaridade
no âmbito acadêmico, D’Ambrosio
(1997) deixou claro que a fragmentação
do conhecimento dificilmente
confere a seus detentores a capacidade de
reconhecer e enfrentar situações novas,
emergentes de um mundo cuja complexidade
é crescente na medida em que
incorpora, em intervalos de tempo cada vez
mais curtos, novos fatos à realidade através
da tecnologia.
Quando propomos o estudo sobre
arquitetura rural com base no pensamento
complexo, reconhecendo seu caráter transdisciplinar,
temos em vista o fato de que a
complexidade, longe de ser um conceito
apenas teórico, é uma característica do
mundo contemporâneo que torna-se explícita
toda vez que se colocam questões
sobre relações intrincadas como as que se
dão no âmbito do “sistema cidade-campo”.
A complexidade, de acordo com Mariotti
(2000), corresponde à multiplicidade e à
interação dos sistemas e fenômenos que
compõem o mundo natural, e só pode ser
compreendida por meio do pensamento
complexo (sistema de pensamento aberto,
abrangente e flexível) que procura enxergar
as constantes mudanças da realidade sem
negar as contradições, a aleatoriedade e as
incertezas inerentes a qualquer contexto
que se enfoca no mundo contemporâneo.
A transição da agricultura tradicional
para o chamado agribusiness baseia-se na
integração do setor agropecuário com os
setores industriais e de serviços. O incremento
de tecnologia e o aperfeiçoamento
dos processos nas fazendas, que transformam
a agricultura num ramo da indústria,
vêm ocorrendo de maneira heterogênea
no Brasil, aprofundando as
diferenças regionais, principalmente no
que se refere à organização dos fatores da
produção e à integração com os ramos mais
dinâmicos da economia (ARAUJO;
WEDEKIN & PINAZZA, 1990). O uso da
enxada pode significar inovação tecnológica
em determinadas regiões, enquanto outras
participam do que há de mais moderno no
agribusiness mundial.
Nas regiões mais desenvolvidas, a
crescente industrialização da agricultura
aponta para uma nítida tendência de
eliminação do produto rural, ou, da base
138 VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X
André Munhoz de Arghollo Ferrâo
Arquitetura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de uma abordagem transdisciplinar...
rural da agricultura (GOODMANN; SORJ
& WILKINSON, 1990). Ao descrever a nova
dinâmica da agricultura brasileira, Graziano
da Silva (1996) concorda com Goodmann
et al. (1990), afirmando que “os complexos
agroindustriais já estão se convertendo em
complexos bioindustriais”, pois as indústrias
de base biológica têm lugar garantido
na indústria alimentar do futuro, devendo
ampliar o seu espaço na agricultura
(indústria de sementes e matrizes, vacinas,
defensivos e fertilizantes, etc.).
A arquitetura rural vem co-evoluindo
com base neste contexto desde meados do
século XX. Dentro da fazenda tornou-se
nítida a tendência de especialização na
atividade fim, assim, muitos sub-processos
passaram a ser realizados por terceiros.
Fora da fazenda estruturou-se um moderno
parque industrial, fornecedor de bens de
capital e insumos que abastecem o campo.
Por outro lado, nas regiões agrícolas
mais caracterizadas pela presença da
agricultura familiar em pequenas propriedades
e por técnicas tradicionais de
produção agrícola, a arquitetura rural caracteriza-
se como agente de resgate e
manutenção da memória e dos valores
culturais, contribuindo para a conformação
da paisagem e ordenação do território.
Em ambos os casos pode-se dizer que a
paisagem cultural de uma determinada
região agrícola é marcada fortemente por
sua arquitetura rural.
4. ARQUITETURA RURAL A PARTIR
DE UMA ABORDAGEM SISTÊMICA E
VISÃO DE PROCESSOS: O CASO DA
ARQUITETURA DO CAFÉ
Quando se adota uma abordagem
sistêmica e a visão de processos com o
objetivo de caracterizar a arquitetura rural
de uma determinada região, há de se ter em
conta que as relações entre técnica e
arquitetura no âmbito de uma cadeia
produtiva desenvolvem-se, principalmente,
numa porção do espaço bem
definida, e podem, por isso mesmo,
caracterizar um sistema espacial, como
uma fábrica, uma oficina, um escritório, ou
uma fazenda.
Ao trabalharmos, por exemplo, com as
propriedades agrícolas das principais
regiões cafeeiras do estado de São Paulo,
adotamos tal abordagem e as consideramos
cada uma como um sistema espacial
específico, em conformidade com a lógica
do período enfocado e com as respectivas
relações entre técnica e arquitetura no
âmbito da cadeia produtiva do café. Desse
modo, as variáveis envolvidas ultrapassam
os limites de cada propriedade.
Um sistema espacial pode ser estabelecido
por uma “combinação determinada
de modos específicos de produção,
de circulação, de distribuição e de consumo
de bens materiais”, formando um grupo de
estruturas, que se definem por objetos que
se interagem obedecendo a um conjunto de
regras que regulam o sistema. Desse modo,
o conhecimento real de um espaço não se
dá pelas “relações”, mas pelos “processos”
que nele se realizam. Ao se falar de
“processo”, remete-se à idéia de tempo
(SANTOS, 1990).
Tomamos a fazenda de café como
unidade de produção agroindustrial da
cadeia produtiva do café, e a caracterizamos
a partir da compreensão da evolução dos
processos que sobre ela se realizaram, o que
faz dela um espaço produtivo, tornandose
necessária a abordagem sistêmica, a qual
fornece instrumentos para a análise de um
espaço como sistema de sistemas, comandado
por regras próprias ao seu modo de
produção dominante, e que se adapta ao
meio local (ARGOLLO FERRÃO, 1998).
Cada sistema ou subsistema é composto
por elementos que estruturam o espaço,
cuja ação é necessariamente combinada
com a dos demais. Cada elemento possui
VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X 139
André Munhoz de Arghollo Ferrâo
Arquitetura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de uma abordagem transdisciplinar...
valores intrínsecos ou sistêmicos. Os sistemas
e suas estruturas co-evoluem continuamente,
principalmente pela ação
exógena de elementos do seu domínio
sobre os elementos internos ao sistema,
mas há também uma co-evolução endógena
induzida pela evolução de cada elemento
do sistema (SANTOS, 1992).
O espaço do ser humano resulta de sua
produção, a qual, por meio de técnicas e
instrumentos de trabalho, intermedia sua
relação com a natureza. Cada atividade de
um processo produtivo (produção, circulação,
distribuição e consumo) tem seu
lugar no tempo e no espaço, mas somente
a produção relaciona-se intimamente com o
lugar onde se realiza, particularmente em
se tratando de produção agrícola, cujo
processo segue uma seqüência linear bem
marcada, iniciando-se com a preparação da
terra, passando pela semeadura, limpeza
dos campos, até a colheita, e eventualmente
a estocagem (SANTOS, 1990). Portanto, ao
se estudar arquitetura rural deve-se
considerar as relações entre a produção e o
lugar onde ela se dá.
Ao se caracterizar a arquitetura ruralcom
base num determinado processo produtivo,
há que se explicitar o universo em que ele
se insere, cujos elementos são ora determinantes,
ora resultantes de sua evolução.
O processo co-evolui de acordo com o
contexto que inclui a lógica das correlações
entre técnica e arquitetura no âmbito do
sistema em foco.
140 VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X
André Munhoz de Arghollo Ferrâo
Arquitetura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de uma abordagem transdisciplinar...
A Figura 1 apresenta esquematicamente
um método de abordagem sistêmica para
o estudo e a caracterização da arquitetura
ruralno âmbito de uma determinada cadeia
produtiva.
Inicialmente há que se compreender o
contexto em que se insere a arquitetura que
se pretende caracterizar, tendo em vista o
fato de que sua conformação segue a lógica
dos processos que interagem nesse contexto.
Assim, três linhas de evolução (chamarei
de “vetores de co-evolução”) devem guiar o
estudioso da arquitetura rural no âmbito de
um complexo produtivo.
Figura 1. Abordagem sistêmica e visão de processos para o estudo da arquitetura rural
O primeiro vetor de co-evolução diz
respeito à complexidade inerente ao
contexto que se quer enxergar, ou seja, há
que se procurar compreender a evolução
dos processos culturais que afetam e são
afetados pelo complexo produtivo que se
está analisando. Fatos da história local,
regional, nacional, e mesmo mundial, dependendo
da abrangência que se pre-tende
dar à análise; características geo-gráficas,
sócio-econômicas, ecológicas, enfim, há
que se procurar desenhar os processos
culturais que compõem o contexto que se
pretende estudar.
O segundo vetor de co-evolução diz
respeito a um universo particular pertencente
ao conjunto que exprime a realidade
que se procura enxergar no primeiro
vetor: processos científicos e tecnológicos,
que, por considerá-los necessariamente
inte-grados, passarei a chamá-los de
“processo C&T”. É óbvio que a evolução da
ciência e da tecnologia poderia compor o
estudo a ser empreendido ao se enfocar os
processos culturais, mas, por se tratarem
de processos intimamente ligados entre si
(a ponto de serem aqui enxergados como
um único processo integrado), e ambos
serem diretamente ligados ao processo de
evolução da arquitetura rural, é importante
que eles sejam caracterizados em separado,
para que sua co-evolução seja mais
facilmente reconhecida.
Por outro lado, o processo C&T determina
o contexto dos processos produtivos
no âmbito do complexo que se pretende
estudar. Assim, o segundo vetor de coevolução
representa o conjunto dos processos
produtivos integrando o processo
C&T e demais referências fundamentais
para a compreensão do universo da produção
agroindustrial ou agro-ecológica.
Ambos os vetores: o que representa a
evolução dos processos culturais e o que
representa a evolução dos processos produtivos
co-evoluem afetando-se mutuamente,
promovendo e sofrendo mudanças
a partir da lógica que os processos
que os compõem possui. Tais mudanças
repercutem sobre um terceiro vetor de coevolução:
o que representa o processo de
conformação da arquitetura da produção
do complexo em foco, ou seja, processos
agro-industriais ou agro-ecológicos, em se
tratando do estudo da arquitetura rural.
Assim, a co-evolução do contexto em
que se inserem os “vetores” que representam
os processos culturais e os processos
produtivos determina a evolução do
vetor que representa o processo de conformação
da arquitetura da produção do
cluster tomado como objeto de estudo. A
arquitetura rural é, pois, resultante da
integração dos processos culturais e produtivos
que co-evoluem no âmbito de um
determinado complexo agroindustrial, ou
agro-ecológico.
A abordagem sistêmica da arquitetura
rural a partir de complexos produtivos
permite a caracterização de tipologias
arquitetônicas rurais por períodos e subregiões
delimitados histórica e geograficamente.
Por exemplo: a arquitetura da
produção rural cafeeira em São Paulo no
início do século XX é diferente da arquitetura
que se pratica contemporaneamente
(início do século XXI), ou, da
arquitetura cafeeira na porção paulista do
Vale do Paraíba em meados do século XIX,
ou ainda, na região de Ribeirão Preto na
virada do século XIX para o século XX.
Pode-se, da mesma forma, falar em
arquitetura da produção sucro-alcooleira,
arquitetura da laranja, arquitetura da
pecuária de leite, e assim por diante. O
estudo sobre arquitetura rural deve ser
inexoravelmente contextualizado.
A mesma abordagem pode ser adotada
quando o foco sobre a arquitetura da
produção deixar de ser agroindustrial ou
agro-ecológico, e passar a pertencer a
qualquer outro ramo da indústria ou
VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X 141
André Munhoz de Arghollo Ferrâo
Arquitetura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de uma abordagem transdisciplinar...
mesmo do setor de serviços. Desse modo,
pode-se propor esta metodologia para o
estudo da arquitetura da produção de
máquinas e implementos agrícolas, por
exemplo, ou para a arquitetura de empreendimentos
de turismo no espaço rural,
e assim por diante.
A arquitetura da produção rural
cafeeira no estado de São Paulo foi caracterizada
de acordo com esta metodologia.
Definiu-se o complexo produtivo da
fazenda cafeeira típica como sendo o conjunto
formado por terreiro, tulha e casa das
máquinas (o núcleo industrial da fazenda),
mais o cafezal. Portanto, a arquitetura do
complexo produtivo da fazenda cafeeira
abrange a arquitetura do núcleo industrial
e a arquitetura do cafezal (ARGOLLO
FERRÃO, 1998).
A correlação entre arquitetura e
tecnologia empregadas num complexo
agroindustrial torna-se nítida ao se enfocar
a co-evolução do complexo produtivo do
café tendo em vista os aspectos arquitetônicos
dos centros urbanos das regiões
por onde ele passou; a logística de abertura
e formação das fazendas; as formas e
funcionalidade de suas benfeitorias; e a
maneira pela qual se desenhou e montou o
corpo ideal do cafeeiro (ao que os geneticistas
chamam de “arquitetura da planta”).
Assim, a arquitetura do café, composta
por remanescentes físicos e culturais em
todo o estado de São Paulo, permite a
condução de estudos objetivos sobre vários
aspectos das relações entre técnica e arquitetura.
Dependendo de como se conduz
uma pesquisa nesse campo, pode-se identificar
vários níveis daquilo que denominamos,
genericamente, de arquitetura do
café (ARGOLLO FERRÃO, 2004), quais
sejam:
• no nível regional, a arquitetura das regiões
produtoras de café, estabelecida conforme
uma lógica de ocupação dos espaços
geográficos e de planejamento urbano
bem definida, compatível com a evolução
da infra-estrutura de apoio à economia
cafeeira;
• no nível da propriedade, a arquitetura das
fazendas de café, em que os edifícios,
caminhos, parques, jardins, pomares,
plantações e criações foram concebidos
de acordo com padrões arquitetônicos
específicos e compatíveis com o modo
de produzir em cada sub-período do
ciclo cafeeiro;
• no nível do edifício e do maquinário, a
arquitetura do núcleo industrial das
fazendas, dada pela composição do
conjunto “terreiro, tulha, e casa das
máquinas”, em que o layout interno e
externo dos edifícios era planejado para
otimizar as operações de secagem e
beneficiamento do grão. Valoriza-se o
patrimônio cultural da engenharia e da
arquitetura manifesto em cada edifício
e em cada maquinário instalado no
núcleo industrial da fazenda;
• e, finalmente, no nível agro-ecológico, a
arquitetura do cafezal, em que o planejamento
da instalação e do manejo da
plantação é feito de maneira a protegêla
de fenômenos climáticos perniciosos,
facilitar os seus tratos culturais, e a racionalizar
a colheita, preparo e transporte
interno do produto. Ainda no nível agroecológico,
há também a própria arquitetura
do cafeeiro, representada pelo
trabalho de melhoramento genético, que
se preocupa em desenhar e consubstanciar
uma planta com formato,
tamanho, resistência de ramos e folhas,
inserção de flores e frutos, etc., capaz de
proporcionar alta produtividade, mecanização
das principais práticas agrícolas,
conforto para os trabalhadores
que a manejam, resistência às pragas e
doenças, etc.
AFigura 2 apresenta esquematicamente
os níveis de abordagem para o estudo sobre
142 VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X
André Munhoz de Arghollo Ferrâo
Arquitetura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de uma abordagem transdisciplinar...
arquitetura rural, a partir do que propusemos
para os estudos sobre a arquitetura do café.
Pode-se considerar 4 grandes níveis de
abordagem: o nível regional, composto
pela tipologia arquitetônica do conjunto de
unidades produtivas de uma dada região;
o nível da fazenda ou da unidade
produtiva, composto pela arquitetura do
núcleo industrial mais a arquitetura da(s)
lavoura(s); o nível do edifício, onde cada
edifício pode ser considerado o objeto de
estudo, assim como cada máquina, ou
ainda, o conjunto de máquinas abrigadas
em cada edifício; e finalmente, o nível agroecológico,
onde se estudaria a arquitetura
genética das plantas que compõem a
lavoura ou as lavouras enfocadas nas
unidades produtivas, como visto no caso
da arquitetura do café com o desenho do
cafeeiro e do cafezal.
VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X 143
André Munhoz de Arghollo Ferrâo
Arquitetura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de uma abordagem transdisciplinar...
Caracterizou-se a arquitetura rural cafeeira
a partir de cada elemento do seu
complexo produtivo, primeiro tomado
isoladamente e depois a partir de uma visão
integradora, incluindo todo o conjunto
arquitetônico da propriedade: a arquitetura
dos terreiros, tulhas e casas de máquinas;
os viveiros e casas de vegetação; a própria
arquitetura do cafezal, influenciada pela
evolução técnica do maquinário agrícola e
também pelas condições locais sócioeconômicas
e ecológicas; e, finalmente, os
edifícios e instalações destinados a abrigar
atividades complementares e suplementares
da fazenda (Argollo Ferrão, 2004).
5.MULTIFUNCIONALIDADE E MULTICULTURALIDADE:
O ESPAÇO DA
ARQUITETURA RURAL NO ÂMBITO
DAS PAISAGENS CULTURAIS BRASILEIRAS
A existência no Brasil, de um excelente
sistema de pesquisa e extensão rural foi
fundamental para o espetacular desenvolvimento
da agroindústria do País, ocorrido
ao longo do século XX. As unidades de
produção agrícola, como espaços produtivos
inseridos no contexto de um determinado
complexo agroindustrial, em geral
pertencem a uma cadeia específica. Até
recentemente não se concebia outra alternativa
para os proprietários rurais que não
fosse a utilização de suas terras como
unidades de produção agrícola (ou
agroindustrial para aqueles que conse-
Figura 2. Esquema de representaÇão dos níveis de abordagem dos estudos em arquitetura rural
guiam agregar valor aos seus produtos).
No entanto, desde o final da década de 1980,
e mais intensamente a partir do início da
década de 1990, o meio rural começou a ser
visto como cenário de negócios voltados
também para o lazer e o entretenimento.
No Brasil é crescente o interesse pelo
turismo rural. Diversas propriedades rurais
e municípios inteiros, dispersos pelas
várias regiões do Brasil vêm explorando de
maneira consciente e profissional este mercado
que tende a se expandir. Ainda há
muito que fazer no sentido de se valorizar
o maravilhoso e extremamente rico conjunto
formado pelas diversas e heterogêneas
paisagens culturais no Brasil. De fato, tratase
de um enfoque relativamente novo, e
mesmo entre acadêmicos e profissionais
dos ramos ligados à cultura, arquitetura e
empreendimentos civis, há que se alinhar
conceitos, construir uma linguagem, estabelecer
procedimentos de abordagem para
estudos, e consolidar um cabedal transdisciplinar
de conhecimentos afins.
A condução de estudos que permitam a
descrição das paisagens culturais de regiões
e sub-regiões, conjuntos de municípios
ou mesmo a de um único município,
contribui para a consolidação deste tema
dentro do contexto acadêmico, e conseqüentemente,
no âmbito da própria sociedade
brasileira, incluindo os setores públicos
e privados em suas diversas escalas e
níveis de atuação.
Nas regiões mais desenvolvidas do
Brasil as intensas transformações que
sofrem as paisagens rurais e urbanas
normalmente carecem de planejamento.
Muito mais fortes são as pressões sócioeconômicas
advindas de uma imensa
quan-tidade de trabalhadores sem terra e
de empresários rurais descapitalizados.
Este contexto conduz a uma lógica de
expansão urbana que considera o espaço
rural apenas como reserva para a voracidade
do mercado imobiliário.
Há portanto, um longo caminho a
percorrer para chegarmos, no Brasil, à
condição holandesa descrita por Vlassenrood
(2004). Segundo a autora, ao longo do
último século, toda a paisagem natural na
Holanda foi transformada em paisagem
cultural. O território holandês está completamente
urbanizado. O contraste entre
cidade e campo leva à idéia de que ambos
não se encontram em lados opostos, mas do
mesmo lado. Em cada caso as transformações
convergem para a integração de
papéis, respondendo à questão da possível
dicotomia entre expansão urbana e desenvolvimento
rural, preservando suas características
culturais e de paisagem.
Nos Estados Unidos, a preocupação
com um possível processo dicotômico
entre expansão urbana e desenvolvimento
rural se nota em algumas regiões desde a
década de 1950. Segundo Kostof (1989), os
economistas rurais foram os pioneiros no
estudo sobre as dinâmicas relações entre
cidade e campo a partir da compreensão da
intensa mistura de usos agrícolas e urbanos
do solo. Assim, caracterizou-se a chamada
região “rurbana” como uma área heterogênea
no que se refere ao uso do solo; que se
apresenta dispersa e com baixa densidade
de construções, contrastando com a paisagem
estritamente rural ou urbana.
O território brasileiro é muito grande, e
não se pretende comparar o seu contexto
com o de regiões desenvolvidas como a
Holanda, ou o norte da Itália. Por outro
lado, não se pretende sugerir que a
dinâmica da relação entre cidade e campo
nas regiões mais desenvolvidas do Brasil
possa ser comparada com a dinâmica norte
americana. Todavia é possível destacaremse
aspectos semelhantes tanto em relação
aos casos europeus, como em relação aos
casos norte americanos. Por isso mesmo, é
sempre importante a condução de estudos
144 VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X
André Munhoz de Arghollo Ferrâo
Arquitetura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de uma abordagem transdisciplinar...
que contribuam para a construção em
mosaico do mapa de paisagens culturais
brasileiras.
A crescente incorporação dos sistemas
de engenharia sobre o meio natural, e a
evolução dos sistemas de comunicação,
com a conseqüente conformação do
chamado “meio técnico-científico-informacional”,
proposto por Milton Santos
(1996), impedem que se estabeleça a
dissociação entre cidade e campo sem as
necessárias reflexões.
Toda atividade econômica contemporânea
demanda ciência e tecnologia,
podendo ser indistintamente aplicada ao
campo (com conhecimentos advindos da
cidade), ou à cidade (com conhecimentos
advindos do campo), modificando a
arquitetura dos sistemas espaciais “campo”
e “cidade”, contribuindo tanto para a
modelagem de um novo perfil rural como
para a pauta das discussões sobre os rumos
do desenvolvimento urbano sustentável.
Nesse sentido, o enfoque sistêmico e a
visão de processos sobre a arquitetura rural
levam a trabalhos que permitem a descrição
do potencial turístico baseado nas
paisagens culturais de regiões inteiras, subregiões,
ou municípios que tenham sofrido
forte influência de algum ciclo econômico
agro-industrial-comercial contextualizado
nas condições culturais locais, como por
exemplo, o ciclo cafeeiro (ARGOLLO
FERRÃO, 2003b). É possível descrever a
paisagem cultural e conseqüentemente o
potencial turístico baseado nos valores
culturais locais de cada município brasileiro.
Há no Brasil estudos de diversos autores
para quase todas as regiões do País.
O imenso patrimônio cultural rural,
repleto de fazendas centenárias, antigas
estruturas de engenharia, ícones da história
econômica e da história da técnica, além de
promover o turismo rural, o turismo
cultural e o turismo ecológico, alavanca o
chamado turismo de negócios, trazendo
para cidades do interior conven-ções,
congressos, encontros profissionais, eventos
acadêmicos de diversa índole, além das
chamadas excursões de demons-tração
para produtores rurais. As festas regionais
(da uva, do figo, das flores, etc., ver Tabela
1, apenas para citar algumas) são
tradicionais em todo o Brasil, muitas há
mais de 50 anos. As festas de peão, que se
transformaram num negócio milionário a
partir da incorporação do estilo country
(importado dos Estados Unidos), compõem
este cenário de irrefutável potencial
turístico baseado nas paisagens culturais
de determinadas regiões brasileiras
(ARGOLLO FERRÃO, 2003b).
VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X 145
André Munhoz de Arghollo Ferrâo
Arquitetura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de uma abordagem transdisciplinar...
Tabela 1. Algumas das principais festas típicas relacionadas a culturas locais de caráter rural no
estado de São Paulo (Brasil).
O idioma inglês possui uma expressão
com a qual se reconhece o significado das
relações entre determinadas festas de
tradição cultural e o local (município ou
região) onde elas ocorrem: event places.
Cada vez mais a capacidade de resgate e
valorização da memória, bem como de
transmissão da informação, que esses locais
com eventos associados possui tem chamado
a atenção de pesquisadores profissionais e
acadêmicos interessados em planejamento
regional (SABATÉ; FRENCHMAN &
SCHUSTER, 2004). Estudiosos ligados às
áreas de socio-logia, antropologia e
etnografia passam a conviver com o
interesse crescente de colegas de outras
áreas, como turismo, engenharia de empreendimentos,
arqui-tetura e urbanismo.
As possibilidades de novos negócios no
campo que o estudo sobre arquitetura rural
induz a visualizar, leva à necessidade de
caracterização desses negócios sob o enfoque
sistêmico. A multifuncionalidade do
campo tem sido objeto de interesse de
autores de diversas áreas do conhecimento.
De fato o campo parece estar sendo
reconhecido como cenário de mudanças
estruturais importantes, o que reforça a
importância do papel da arquitetura rural
como uma área de conhecimento transdisciplinar
fundamental para a valorização
do patrimônio cultural rural, não só no que
tange à restauração de edificações de valor
histórico (como antigos casarões, senzalas,
terreiros, tulhas e casas de máquinas,
engenhos, antigas pontes e estruturas de
engenharia, etc.), mas também no que se
refere à implantação (ou adequação) de
empreendimentos nos novos nichos de
negócio que vão surgindo no meio rural a
partir do reconhecimento da complexidade
de um contexto que nos dias de hoje
encontra-se em permanente estado de
mudança.
No Brasil, as margens “rurbanas”
podem ser reconhecidas nas regiões mais
desenvolvidas como áreas que passam por
um intenso processo de metropolização,
onde a zona rural pode rapidamente se
transformar num bairro populoso, muitas
vezes implantado sem infra-estrutura
urbana, e com muitas construções clandestinas.
O problema se agrava na medida em
que se aumenta a concentração de pessoas.
Alguns autores, preocupados com a
delimitação do espaço urbano e do espaço
rural, propõem como referência as atividades
dos moradores de um determinado
aglomerado em foco. Nesse sentido,
Graziano da Silva (2002) salienta a
distinção entre população rural (residente
na zona rural) e população agrícola
(pessoas que realmente se ocupam de
atividades agrícolas). O autor considera
inadequado relacionar as atividades
exercidas pela população (agrícola ou não
agrícola) para caracterizar o espaço onde
ela reside (rural ou urbano). Olga Tulik
(2003) procura discutir esta questão para
introduzir especialistas de outras áreas,
iniciantes e leigos interessados no estudo
sobre Turismo Rural. Ambos os autores
reconhecem como sendo uma das tendências
mais importantes da década de 1990 o
crescimento das atividades não agrícolas
nas áreas ditas rurais, verificada em países
desenvolvidos e na América Latina de
modo geral, particularmente no Brasil
(GRAZIANO DA SILVA, 2002; TULIK,
2003).
Em linhas gerais, por suas características
intrínsecas, o campo de estudos sobre
arquitetura rural é essencialmente transdisciplinar,
uma vez que em seu escopo apresentam-
se questões complexas como:
• as relações do sistema cidade-campo,
• as definições e delimitações dos espaços
rural e urbano,
• o reconhecimento da tendência de
consolidação dos aspectos de multifuncionalidade
das propriedades rurais,
• a necessidade de se projetar e construir
para atividades específicas de uma
agricultura moderna,
• a necessidade de se projetar e construir
para pequenas e médias propriedades
146 VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X
André Munhoz de Arghollo Ferrâo
Arquitetura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de uma abordagem transdisciplinar...
rurais administradas por uma família e
seus agregados.
Finalmente, cabe deixar explícito que o
papel da arquitetura rural torna-se cada vez
mais importante na medida em que cresce
o debate sobre a delimitação do espaço
rural e do espaço urbano, e também, na
medida em que se percebe que não se pode
continuar esse processo desordenado de
ocupação do território. Da integração entre
o meio natural e os sistemas geradores de
ciência e informação de que se compõem as
nações modernas, configura-se o ambiente
construído, rural e urbano, ou, o chamado
“meio técnico-científico-informacional”, o que
permite dizer que sua arquitetura encontrase
intimamente relacionada com o seu
sistema tecnológico, trazendo à tona a
importância que se deve dar ao binômio
cidade-campo no âmbito dos processos que
se desenrolam num dado território.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAUJO, N. B.; WEDEKIN, I.; PINAZZA, L. A.
(1990): Complexo agroindustrial: o agribusiness
brasileiro. São Paulo: Agroceres, 238p.
ARGOLLO FERRÃO, A. M. de. (2004): Arquitetura
do Café. Campinas : Editora da Unicamp;
São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 296 p.
ARGOLLO FERRÃO, A. M. de. (2003a): Arquitetura
agrícola dentro do contexto das construções
rurais. Capítulo 3, p.65-92. In.: FREIRE, W. J.
& BERALDO, A.L. Materiais alternativos e
tecnologias apropriadas. Campinas: Editora
da Unicamp.
ARGOLLO FERRÃO, A. M. de. (2003b): O
potencial turístico da arquitetura rural no Brasil.
In: 4º CONGRESSO BRASI-LEIRO DE TURISMO
RURAL. Anais... p.45-56. Piracicaba,
FEALQ.
ARGOLLO FERRÃO, A. M. de. (1998): Técnica &
Arquitetura. A evolução do espaço produtivo das
fazendas de café de São Paulo condicionada à
dinâmica de integração entre Engenharia e
Arquitetura. São Paulo: FAUUSP, 296p. Tese
de Doutorado.
D’AMBROSIO, U. (1997): Transdisciplinaridade.
São Paulo: Palas Athena.
FREIRE, W. J.; BERALDO, A. L. (organizadores).
(2003):Materiais alterna-tivos e tecnologias
apropriadas. Campinas: Editora da Unicamp.
GOODMANN, D.; SORJ, B.; WILKINSON, J.
(1990):Da lavoura às biotecnologias: agricultura
e indústria no sistema internacional. Rio de
Janeiro: Cam-pus.
GRAZIANO DA SILVA, J. (2002):O novo rural
brasi-leiro. Campinas, Unicamp-IE.
GRAZIANO da SILVA, J. (1996): A nova dinâmica
da agricultura brasileira. Campinas: Unicamp,
Instituto de Economia.
KOSTOF, S. (1989): Junctions of town and country.
In: Dwellings, settlements and tradition:
cross-cultural perspectives. Berkley, University
Press of America, IASTE - University of
California, p.107-20.
MARIOTTI, H. (2000): As paixões do ego: complexidade,
política e solidariedade. São Paulo: Palas
Athena.
SABATÉ BEL, J.; SCHUSTER, J. M. (Ed.) (2001):
Projectant l’eix del Llobregat, Paisatge cultural i
desenvolupament regional - Designing the
Llobregat Corridor, Cultural landscape and
regional develop-ment. Barcelona: Universitat
Politècnica de Catalunya; Massachusetts
Institute of Technology, 200 p.
SABATÉ BEL, J.; FRENCHMAN, D.; SCHUSTER,
J. M. (Ed.) (2004): Llocs amb esdeveniments-
Event places. Barcelona: Universitat Politècnica
de Catalunya; Massachusetts Institute of
Technology; International Laboratory on
Cultural Landscapes, 288 p.
SANTOS, M. (1996): A natureza do espaço. São
Paulo: Hucitec.
SANTOS, M. (1992 [1985]): Espaço & método. 3ªed.,
São Paulo : Hucitec.
SANTOS, M.(1990 [1978]):Por uma geografia nova.
3ª ed., São Paulo: Hucitec.
TULIK, O. (2003): Turismo rural.São Paulo: Aleph.
VLASSENROOD, L. (2004): Cultural landscape
in transformation. In: Blauwe Kamer, Magazine
for Landscape and Urban Development. Rotterdam,
Netherlands, n. Hybrid Landscapes
(special issue), p.4-7, aug.
VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X 147
André Munhoz de Arghollo Ferrâo
Arquitetura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de uma abordagem transdisciplinar...