Anuario de la Facultad de Geografía e Historia

ISSN: 1133-598X

8

Las Palmas de Gran Canaria

2004

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ANUARIO DE LA FACULTAD DE GEOGRAFÍA E HISTORIA

Número 8

Las Palmas de Gran Canaria 2004

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ARQUITETURA RURAL E PAISAGENS CULTURAIS NO

BRASIL A PARTIR DE UMA ABORDAGEM

TRANSDISCIPLINAR E DA VISÃO DE PROCESSOS

ANDRÉMUNHOZ DEARGHOLLO FERRÂO

Universidade Estadual de Campinas

Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo

argollo@fec.unicamp.br

VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X 133

BIBLID 1133-598X (2004) p. 133-148

Resumen: Este articulo presenta, a

partir de una abordaje transdisciplinary de

la visión de procesos, el arquitectura rural

como un campo de investigación intrínseco

y necesario a: el concepción y análisis

de emprendimentos sustentables; el

ordenación territorial a partir del rescate

de la memoria y de los valores de una comunidad;

el desarrollo de proyectos destinados

a la valoración de las paisajes culturales

vinculadas a la agricultura o al

mundo rural de un país o región. Presenta-

se para el caso brasileño, la arquitectura

resultante de la dinámica del complexo

productivo del café,y las respectivas

repercusiones sobre el territorio de la

provincia de São Paulo. Preséntase, además,

un método de abordaje para investigaciones

sobre el desarrollo rural sustentable,

y se hace el sugerencia de que

el mismo enfoque adoptado para el caso

del café en Brasil pueda ser adecuado

para las investigaciones a respecto de arquitectura

rural (y de las paisajes culturales

relacionadas a ella) a partir de otros

productos agro-industriales y otros contextos

culturales. Finalmente, se hace la

sugerencia de que la arquitectura rural, así

como las investigaciones sobre las paisajes

culturales vinculadas a ella, deban, necesariamente,

continuar siendo conducidas

a partir del enfoque transdisciplinar

y de la visión de procesos.

Palabras-clave: arquitectura rural,

paisajes culturales, patrimonio cultural,

ordenación territorial, desarrollo sustentable,

turismo rural.

Resumo: Este artigo apresenta, a

partir de uma abordagem transdisciplinar

e da visão de processos, a arquitetura rural

como um campo de estudos intrínseco e

necessário à concepção e análise de empreendimentos

sustentáveis; à ordenação

territorial a partir do resgate da memória

e dos valores de uma comunidade; ao

desenvolvimento de projetos destinados

à valorização das paisagens culturais

vinculadas à agricultura ou ao mundo

rural de um país ou região. Apresenta-se

para o caso brasileiro, a arquitetura

resultante da dinâmica do complexo

produtivo do café, e as respectivas

repercussões sobre o território do estado

de São Paulo. Apresenta-se um método de

abordagem para estudos sobre o desenvolvimento

rural sustentável, e sugere-se

que o enfoque adotado para o caso do café

no Brasil possa ser adequado ao estudo da

arquitetura rural (e das paisagens culturais

relacionadas a ela) a partir de outros

produtos agroindustriais e outros contextos

culturais. Salienta-se, por fim, que

a arquitetura rural, assim como os estudos

sobre as paisagens culturais vinculadas a

ela, devam, necessariamente, continuar

sendo realizados a partir do enfoque

transdisciplinar e da visão de processos.

Palavras-chave: arquitetura rural,

paisagens culturais, patrimônio cultural,

ordenação territorial, desenvolvimento

sustentável, turismo rural.

Abstract: This paper presents rural architecture

as a discipline which must be

studied from a specific viewpoint: process

and transdisciplinar vision. This approach

is absolutely necessary when the rural

landscapes and the agricultural activities

are in focus. The regional planning, including

management and cultural landscapes

projects, maintain a straight relationship

with rural architecture when productives

processes are analyzed. This approach

is also important when a regional

planning is based on cultural heritage.

The Brazilian coffee productive process

was presented like a case. The “architecture

of coffee” in São Paulo state is presented.

This method can be used to analyze

cultural landscapes based on rural architecture.

All of the agribusiness commodities

can generate a specific rural architecture

and this is an important element to characterize

its respective cultural landscapes.

The conclusion indicates that this kind of

studies must be done with similar approach.

Key-words:rural architecture, cultural

landscapes, cultural heritage, regional

planning, sustainable development, rural

tourism.

134 VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X

André Munhoz de Arghollo Ferrâo

Arquitetura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de uma abordagem transdisciplinar...

1. ESTUDOS SOBRE ARQUITETURA

RURAL NO BRASIL

Os estudos sobre arquitetura rural no

Brasil têm evoluído nos últimos anos de

acordo com a lógica das intensas mudanças

por que passa o ambiente rural do País.

Normalmente, ao se enfocar a arquitetura

rural, remete-se logo à idéia de uma paisagem

singela, composta por pequenos

sítios ou enormes glebas sem a necessária

infra-estrutura física capaz de dotar o

território de elementos que otimizem a

produção agropecuária e ao mesmo tempo

a qualidade de vida dos trabalhadores e

empresários rurais.

No entanto alguns pesquisadores têm

enfocado a arquitetura rural como um

campo de estudos absolutamente fundamental

para o desenvolvimento sustentável

do País. Esta postura acadêmica é

relativamente recente, intensificando-se a

partir da última década.

A paisagem rural brasileira, com seu

imenso patrimônio cultural, confere aos

estudos sobre arquitetura rural uma dimensão

sócio-econômica importante. Os

edifícios destinados à produção agroindustrial

compõem uma notável arquitetura

agrícola ou, a arquitetura (da produção)

rural abrangendo, inclusive,

construções específicas de processos de

produção agrícola instalados em cidades

ou regiões metropolitanas (ARGOLLO

FERRÃO, 2003a).

Ao se estudar arquitetura rural sob o

enfoque transdisciplinar e a visão de processos,

há que se enfocar o planejamento do

espaço físico (especialmente o espaço produtivo)

das propriedades agrícolas, e os

valores que se pode adicionar aos processos

de desenvolvimento rural sustentável de um

País ou uma região. Há que se adotar

unidades de análise e/ou planejamento

distintas por suas características ecológicas,

econômicas, ou culturais. Por exemplo:

• as micro-bacias hidrográficas como

unidades de análise ou planejamento

integradas do ponto de vista ecológico;

• determinadas regiões dedicadas à

produção de café (ou a algum outro

processo agroindustrial) como unidades

de planejamento integradas por suas

características econômicas;

• regiões históricas, repletas de tradições

culturais, ou dedicadas a produtos

típicos fortemente vinculados ao território

onde são produzidos, a ponto de

caracterizarem sua paisagem e serem

reconhecidos por ela, numa relação

intrínseca entre processo produtivo e

organização territorial, podem ser consideradas

como unidades de análise ou

planejamento integradas por suas

características culturais.

As três situações descritas acima

compreendem elementos necessários à

caracterização das paisagens culturais das

diversas e heterogêneas regiões agrícolas

brasileiras, sendo todas elas, objeto de

estudos da arquitetura rural.

As correlações entre as técnicas

empregadas em determinados processos

produtivos com a arquitetura dos respectivos

espaços de produção são fundamentais

para a compreensão das paisagens

culturais da região em foco. As

múltiplas interfaces e seu papel no

chamado “sistema cidade-campo”, elevam

a arquitetura rural a uma privilegiada

condição de disciplina de integração entre

o território e o complexo sistema científico,

tecnológico e informacional de que se

compõe o agribusiness de um país ou uma

região.

Nas principais regiões agrícolas do

Brasil, a intensa especialização dos processos

de produção agroindustrial vem

modificando a arquitetura rural. Muitas

cidades onde tais unidades de produção se

situam, passaram a abrigar uma arqui-

VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X 135

André Munhoz de Arghollo Ferrâo

Arquitetura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de uma abordagem transdisciplinar...

tetura complexa e específica, repleta de

edifícios e instalações apropriados às

diversas atividades do chamado agribusiness,

como armazéns e silos de grande

porte, terminais intermodais, etc. Já o

espaço produtivo das fazendas normalmente

abrange edifícios destinados à

produção agroindustrial, projetados e

construídos conforme as necessidades do

processo a que se destinam. Nas regiões

agrícolas mais desenvolvidas, o altíssimo

nível científico e tecnológico da agricultura

exige uma infra-estrutura física resultante

de projetos específicos de engenharia e

arquitetura rural.

As pequenas propriedades dedicadas à

agricultura familiar, por sua vez localizadas

em regiões menos desenvolvidas

ou ambientalmente protegidas, também

constituem universo de valiosos estudos

sobre arquitetura rural. Nessas regiões há

que se levar em conta a possibilidade do

emprego de materiais alternativos e

processos simplificados, eficientes do

ponto de vista ecológico e econômico, de

baixo custo e fácil manutenção.

2. ARQUITETURA RURAL: CARACTERIZAÇÃO

E VALORIZAÇÃO DAS

PAISAGENS CULTURAIS

Entendemos a arquitetura rural como

uma disciplina transdisciplinar, integradora

dos campos da arquitetura e ciências

agrárias, abrangendo as correlações entre

todos os elementos arquitetônicos, estruturais

e ambientais referentes aos vários

segmentos da engenharia, co-existentes na

paisagem rural em que estão inseridos:

• A habitação rural: sedes de propriedades

rurais, casas de trabalhadores, conjuntos

habitacionais rurais implantados em

bairros ecológicos situados nas franjas

urbanas das regiões metropolitanas, em

agrovilas ou ecovilas adequadamente

projetadas, condomínios e assentamentos

rurais de diversa índole, etc.;

• A arquiteturaagrícola:edifícios destinados

à produção agrícola, tais como engenhos,

casas de máquinas, terreiros de secagem,

viveiros e casas de vegetação, instalações

e equipamentos de produção agroindustrial,

laboratórios, e os diversos

tipos de edificações apropriadas às

cadeias de produção animal, etc.;

• A arquitetura agro-ecológica: arquitetura

específica da lavoura, das pastagens, dos

próprios seres vivos (animais e plantas)

geneticamente selecionados ou modificados,

dos bosques naturais e artificiais,

jardins, pomares, etc.;

• O patrimônio cultural rural: elementos

arquitetônicos e agro-ecológicos componentes

do fabuloso patrimônio cultural

existente no meio rural, tais como

antigos casarões e senzalas, colônias e

casario disperso, monumentos construídos

com técnicas tradicionais da

arquitetura rural ou com materiais e

técnicas alternativas de construção; toda

a arquitetura vernacular que possa estar

presente no espaço rural, antigas capelas

rurais, antigos engenhos e casas de

máquinas, o próprio maquinário desativado,

antigos equipamentos de produção

de energia (monjolo, rodas d’água,

etc.), estruturas desativadas (como

pontes, diques e barragens), o espaço

físico destinado às manifestações culturais

locais (praças, terreiros, largos,

vilarejos, etc.), enfim, todo o ambiente

construído que conforma o imenso

patrimônio cultural rural;

• A infraestrutura física: elementos da

engenharia rural, tais como os caminhos

e estradas de terra ou calçadas, barragens

e sistemas de irrigação, pontes, poços,

obras de arte da engenharia, obras

hidráulicas e áreas de represa, lagos, rios,

córregos e riachos, fontes e nascentes,

136 VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X

André Munhoz de Arghollo Ferrâo

Arquitetura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de uma abordagem transdisciplinar...

elementos dos sistemas de eletrificação

rural, sistemas de engenharia destinados

à otimização da produção agrícola,

construções diversas, o imenso patrimônio

da engenharia, etc.;

O planejamento da produção e a gestão

de serviços integrados em unidades

regionais definidas por micro-bacias

hidrográficas constituem o método de

abordagem mais adequado, pois abrange

todas as possíveis correlações nos diversos

âmbitos da arquitetura rural: planos de

produção e comercialização agrícola e de

serviços não agrícolas; manejo dos recursos

naturais, principalmente os recursos

hídricos e florestais; ordenação territorial,

planejamento ambiental e agro-ecológico;

e políticas de desenvolvimento rural

sustentável, incorporando modelos de

gestão local, educação, assistência técnica,

pesquisa e extensão baseados em conceitos

de sustentabilidade e eco-eficiência.

Do ponto de vista da arquitetura rural, a

permacultura e o conjunto de técnicas de

construção e de produção sustentáveis

indistintamente utilizadas no campo (advindas

da cidade) ou na cidade (advindas

do campo) contribuem para o desenvolvimento

de regiões marcadas pela

agricultura familiar, e assentamentos de

trabalhadores sem terra, pois dependem

de menor aporte de capital.

O papel da arquitetura rural como

elemento de resgate e valorização da

memória e cultura locais é fundamental

para um desenvolvimento rural sustentável,

uma vez que se caracteriza como

base para o reconhecimento e análise da

paisagem cultural de uma determinada

região.

A valorização dos recursos locais

vinculados ao patrimônio cultural constituise

em ponto de partida de inúmeros planos

de desenvolvimento regional que obtiveram

sucesso na Europa e nos Estados

Unidos (SABATÉ & SCHUSTER, 2001).

Pode-se dizer que o patrimônio industrial,

agrícola, e natural, correlacionando locais

cívicos e religiosos, eventos e festivais

tradicionais, sítios e memória da

engenharia, além da memória dos produtos

e processos típicos (agricultura, artesanato

e indústrias locais), e a própria cultura

popular, caracterizam-se como elementos

de valor intrínseco ao desenvolvimento

sustentável de uma região deprimida ou

estagnada econo-micamente.

Nos últimos 20 anos, percebe-se em

várias regiões do interior do Brasil que as

áreas rurais não estão mais sendo utilizadas

apenas para atividades agropecuárias ou

extrativistas. Atividades econômicas

alternativas, de cunho cultural e ecológico,

como o turismo e o lazer mostram-se cada

vez mais atraentes para os proprietários

rurais. O repovoamento do espaço rural

apresenta-se como alternativa viável e

necessária frente aos problemas cada vez

mais complexos causados pelo intenso

processo de metropolização que ocorre nas

regiões mais desenvolvidas do País.

Por outro lado, é grande o número de

proprietários rurais e trabalhadores sem

terra que não têm acesso ao desenvolvimento

científico e tecnológico do

setor agroindustrial brasileiro. A diversidade

é uma característica marcante do

País. É possível encontrarmos numa mesma

região, arquiteturas distintas voltadas a

processos produtivos contex-tualizados

por lógicas distintas: desde o mais avançado

estágio de desenvolvimento científico e

tecnológico até o mais primitivo contexto

rural. Em ambos os casos, os valores

culturais estão presentes e podem ser

facilmente reconhecidos, de maneira a

imprimir na paisagem marcas indeléveis

originais de cada região.

VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X 137

André Munhoz de Arghollo Ferrâo

Arquitetura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de uma abordagem transdisciplinar...

3. ARQUITETURA RURAL SOB O

ENFOQUE TRANSDISCIPLINAR

A arquitetura rural brasileira possui

dois aspectos marcantes: é complexa e

diversa, pois diversos são os aspectos

pertencentes ao mundo rural, entendidos

a partir de conceitos advindos de fontes

distintas, sob a visão de processos e o

enfoque sistêmico, e pertencentes aos

campos da arquitetura e urbanismo,

geografia, história, economia, administração,

sociologia, antropologia, turismo,

artes e cultura popular, engenharia agrícola,

agronomia, zootecnia, medicina

veterinária, engenharia civil, engenharia

da produção, engenharia ambiental, etc.,

além de outras fontes de conhecimento que

direta ou indiretamente compõem o

universo que abrange o ambiente rural.

As chamadas fontes de conhecimento

não-científico (por exemplo: lendas, mitos,

costumes, know-how popular, artesanato,

etc.) adquirem neste caso valor e peso

significativo pois advém da cultura local, e

constituem agentes dinâmicos que imprimem

personalidade e distinção à região

enfocada. São os casos das diversas festas

e eventos baseados nas tradições populares

que atraem para determinados municípios

recursos e investimentos por meio de fluxos

sazonais de turismo e empreendimentos

sustentáveis relacionados com a cultura

local.

Quando se admite o caráter transdisciplinar

no estudo de algum fenômeno, há

que se aceitar o conhecimento advindo de

fóruns não acadêmicos.

Ao tratar a questão da transdisciplinaridade

no âmbito acadêmico, D’Ambrosio

(1997) deixou claro que a fragmentação

do conhecimento dificilmente

confere a seus detentores a capacidade de

reconhecer e enfrentar situações novas,

emergentes de um mundo cuja complexidade

é crescente na medida em que

incorpora, em intervalos de tempo cada vez

mais curtos, novos fatos à realidade através

da tecnologia.

Quando propomos o estudo sobre

arquitetura rural com base no pensamento

complexo, reconhecendo seu caráter transdisciplinar,

temos em vista o fato de que a

complexidade, longe de ser um conceito

apenas teórico, é uma característica do

mundo contemporâneo que torna-se explícita

toda vez que se colocam questões

sobre relações intrincadas como as que se

dão no âmbito do “sistema cidade-campo”.

A complexidade, de acordo com Mariotti

(2000), corresponde à multiplicidade e à

interação dos sistemas e fenômenos que

compõem o mundo natural, e só pode ser

compreendida por meio do pensamento

complexo (sistema de pensamento aberto,

abrangente e flexível) que procura enxergar

as constantes mudanças da realidade sem

negar as contradições, a aleatoriedade e as

incertezas inerentes a qualquer contexto

que se enfoca no mundo contemporâneo.

A transição da agricultura tradicional

para o chamado agribusiness baseia-se na

integração do setor agropecuário com os

setores industriais e de serviços. O incremento

de tecnologia e o aperfeiçoamento

dos processos nas fazendas, que transformam

a agricultura num ramo da indústria,

vêm ocorrendo de maneira heterogênea

no Brasil, aprofundando as

diferenças regionais, principalmente no

que se refere à organização dos fatores da

produção e à integração com os ramos mais

dinâmicos da economia (ARAUJO;

WEDEKIN & PINAZZA, 1990). O uso da

enxada pode significar inovação tecnológica

em determinadas regiões, enquanto outras

participam do que há de mais moderno no

agribusiness mundial.

Nas regiões mais desenvolvidas, a

crescente industrialização da agricultura

aponta para uma nítida tendência de

eliminação do produto rural, ou, da base

138 VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X

André Munhoz de Arghollo Ferrâo

Arquitetura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de uma abordagem transdisciplinar...

rural da agricultura (GOODMANN; SORJ

& WILKINSON, 1990). Ao descrever a nova

dinâmica da agricultura brasileira, Graziano

da Silva (1996) concorda com Goodmann

et al. (1990), afirmando que “os complexos

agroindustriais já estão se convertendo em

complexos bioindustriais”, pois as indústrias

de base biológica têm lugar garantido

na indústria alimentar do futuro, devendo

ampliar o seu espaço na agricultura

(indústria de sementes e matrizes, vacinas,

defensivos e fertilizantes, etc.).

A arquitetura rural vem co-evoluindo

com base neste contexto desde meados do

século XX. Dentro da fazenda tornou-se

nítida a tendência de especialização na

atividade fim, assim, muitos sub-processos

passaram a ser realizados por terceiros.

Fora da fazenda estruturou-se um moderno

parque industrial, fornecedor de bens de

capital e insumos que abastecem o campo.

Por outro lado, nas regiões agrícolas

mais caracterizadas pela presença da

agricultura familiar em pequenas propriedades

e por técnicas tradicionais de

produção agrícola, a arquitetura rural caracteriza-

se como agente de resgate e

manutenção da memória e dos valores

culturais, contribuindo para a conformação

da paisagem e ordenação do território.

Em ambos os casos pode-se dizer que a

paisagem cultural de uma determinada

região agrícola é marcada fortemente por

sua arquitetura rural.

4. ARQUITETURA RURAL A PARTIR

DE UMA ABORDAGEM SISTÊMICA E

VISÃO DE PROCESSOS: O CASO DA

ARQUITETURA DO CAFÉ

Quando se adota uma abordagem

sistêmica e a visão de processos com o

objetivo de caracterizar a arquitetura rural

de uma determinada região, há de se ter em

conta que as relações entre técnica e

arquitetura no âmbito de uma cadeia

produtiva desenvolvem-se, principalmente,

numa porção do espaço bem

definida, e podem, por isso mesmo,

caracterizar um sistema espacial, como

uma fábrica, uma oficina, um escritório, ou

uma fazenda.

Ao trabalharmos, por exemplo, com as

propriedades agrícolas das principais

regiões cafeeiras do estado de São Paulo,

adotamos tal abordagem e as consideramos

cada uma como um sistema espacial

específico, em conformidade com a lógica

do período enfocado e com as respectivas

relações entre técnica e arquitetura no

âmbito da cadeia produtiva do café. Desse

modo, as variáveis envolvidas ultrapassam

os limites de cada propriedade.

Um sistema espacial pode ser estabelecido

por uma “combinação determinada

de modos específicos de produção,

de circulação, de distribuição e de consumo

de bens materiais”, formando um grupo de

estruturas, que se definem por objetos que

se interagem obedecendo a um conjunto de

regras que regulam o sistema. Desse modo,

o conhecimento real de um espaço não se

dá pelas “relações”, mas pelos “processos”

que nele se realizam. Ao se falar de

“processo”, remete-se à idéia de tempo

(SANTOS, 1990).

Tomamos a fazenda de café como

unidade de produção agroindustrial da

cadeia produtiva do café, e a caracterizamos

a partir da compreensão da evolução dos

processos que sobre ela se realizaram, o que

faz dela um espaço produtivo, tornandose

necessária a abordagem sistêmica, a qual

fornece instrumentos para a análise de um

espaço como sistema de sistemas, comandado

por regras próprias ao seu modo de

produção dominante, e que se adapta ao

meio local (ARGOLLO FERRÃO, 1998).

Cada sistema ou subsistema é composto

por elementos que estruturam o espaço,

cuja ação é necessariamente combinada

com a dos demais. Cada elemento possui

VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X 139

André Munhoz de Arghollo Ferrâo

Arquitetura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de uma abordagem transdisciplinar...

valores intrínsecos ou sistêmicos. Os sistemas

e suas estruturas co-evoluem continuamente,

principalmente pela ação

exógena de elementos do seu domínio

sobre os elementos internos ao sistema,

mas há também uma co-evolução endógena

induzida pela evolução de cada elemento

do sistema (SANTOS, 1992).

O espaço do ser humano resulta de sua

produção, a qual, por meio de técnicas e

instrumentos de trabalho, intermedia sua

relação com a natureza. Cada atividade de

um processo produtivo (produção, circulação,

distribuição e consumo) tem seu

lugar no tempo e no espaço, mas somente

a produção relaciona-se intimamente com o

lugar onde se realiza, particularmente em

se tratando de produção agrícola, cujo

processo segue uma seqüência linear bem

marcada, iniciando-se com a preparação da

terra, passando pela semeadura, limpeza

dos campos, até a colheita, e eventualmente

a estocagem (SANTOS, 1990). Portanto, ao

se estudar arquitetura rural deve-se

considerar as relações entre a produção e o

lugar onde ela se dá.

Ao se caracterizar a arquitetura ruralcom

base num determinado processo produtivo,

há que se explicitar o universo em que ele

se insere, cujos elementos são ora determinantes,

ora resultantes de sua evolução.

O processo co-evolui de acordo com o

contexto que inclui a lógica das correlações

entre técnica e arquitetura no âmbito do

sistema em foco.

140 VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X

André Munhoz de Arghollo Ferrâo

Arquitetura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de uma abordagem transdisciplinar...

A Figura 1 apresenta esquematicamente

um método de abordagem sistêmica para

o estudo e a caracterização da arquitetura

ruralno âmbito de uma determinada cadeia

produtiva.

Inicialmente há que se compreender o

contexto em que se insere a arquitetura que

se pretende caracterizar, tendo em vista o

fato de que sua conformação segue a lógica

dos processos que interagem nesse contexto.

Assim, três linhas de evolução (chamarei

de “vetores de co-evolução”) devem guiar o

estudioso da arquitetura rural no âmbito de

um complexo produtivo.

Figura 1. Abordagem sistêmica e visão de processos para o estudo da arquitetura rural

O primeiro vetor de co-evolução diz

respeito à complexidade inerente ao

contexto que se quer enxergar, ou seja, há

que se procurar compreender a evolução

dos processos culturais que afetam e são

afetados pelo complexo produtivo que se

está analisando. Fatos da história local,

regional, nacional, e mesmo mundial, dependendo

da abrangência que se pre-tende

dar à análise; características geo-gráficas,

sócio-econômicas, ecológicas, enfim, há

que se procurar desenhar os processos

culturais que compõem o contexto que se

pretende estudar.

O segundo vetor de co-evolução diz

respeito a um universo particular pertencente

ao conjunto que exprime a realidade

que se procura enxergar no primeiro

vetor: processos científicos e tecnológicos,

que, por considerá-los necessariamente

inte-grados, passarei a chamá-los de

“processo C&T”. É óbvio que a evolução da

ciência e da tecnologia poderia compor o

estudo a ser empreendido ao se enfocar os

processos culturais, mas, por se tratarem

de processos intimamente ligados entre si

(a ponto de serem aqui enxergados como

um único processo integrado), e ambos

serem diretamente ligados ao processo de

evolução da arquitetura rural, é importante

que eles sejam caracterizados em separado,

para que sua co-evolução seja mais

facilmente reconhecida.

Por outro lado, o processo C&T determina

o contexto dos processos produtivos

no âmbito do complexo que se pretende

estudar. Assim, o segundo vetor de coevolução

representa o conjunto dos processos

produtivos integrando o processo

C&T e demais referências fundamentais

para a compreensão do universo da produção

agroindustrial ou agro-ecológica.

Ambos os vetores: o que representa a

evolução dos processos culturais e o que

representa a evolução dos processos produtivos

co-evoluem afetando-se mutuamente,

promovendo e sofrendo mudanças

a partir da lógica que os processos

que os compõem possui. Tais mudanças

repercutem sobre um terceiro vetor de coevolução:

o que representa o processo de

conformação da arquitetura da produção

do complexo em foco, ou seja, processos

agro-industriais ou agro-ecológicos, em se

tratando do estudo da arquitetura rural.

Assim, a co-evolução do contexto em

que se inserem os “vetores” que representam

os processos culturais e os processos

produtivos determina a evolução do

vetor que representa o processo de conformação

da arquitetura da produção do

cluster tomado como objeto de estudo. A

arquitetura rural é, pois, resultante da

integração dos processos culturais e produtivos

que co-evoluem no âmbito de um

determinado complexo agroindustrial, ou

agro-ecológico.

A abordagem sistêmica da arquitetura

rural a partir de complexos produtivos

permite a caracterização de tipologias

arquitetônicas rurais por períodos e subregiões

delimitados histórica e geograficamente.

Por exemplo: a arquitetura da

produção rural cafeeira em São Paulo no

início do século XX é diferente da arquitetura

que se pratica contemporaneamente

(início do século XXI), ou, da

arquitetura cafeeira na porção paulista do

Vale do Paraíba em meados do século XIX,

ou ainda, na região de Ribeirão Preto na

virada do século XIX para o século XX.

Pode-se, da mesma forma, falar em

arquitetura da produção sucro-alcooleira,

arquitetura da laranja, arquitetura da

pecuária de leite, e assim por diante. O

estudo sobre arquitetura rural deve ser

inexoravelmente contextualizado.

A mesma abordagem pode ser adotada

quando o foco sobre a arquitetura da

produção deixar de ser agroindustrial ou

agro-ecológico, e passar a pertencer a

qualquer outro ramo da indústria ou

VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X 141

André Munhoz de Arghollo Ferrâo

Arquitetura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de uma abordagem transdisciplinar...

mesmo do setor de serviços. Desse modo,

pode-se propor esta metodologia para o

estudo da arquitetura da produção de

máquinas e implementos agrícolas, por

exemplo, ou para a arquitetura de empreendimentos

de turismo no espaço rural,

e assim por diante.

A arquitetura da produção rural

cafeeira no estado de São Paulo foi caracterizada

de acordo com esta metodologia.

Definiu-se o complexo produtivo da

fazenda cafeeira típica como sendo o conjunto

formado por terreiro, tulha e casa das

máquinas (o núcleo industrial da fazenda),

mais o cafezal. Portanto, a arquitetura do

complexo produtivo da fazenda cafeeira

abrange a arquitetura do núcleo industrial

e a arquitetura do cafezal (ARGOLLO

FERRÃO, 1998).

A correlação entre arquitetura e

tecnologia empregadas num complexo

agroindustrial torna-se nítida ao se enfocar

a co-evolução do complexo produtivo do

café tendo em vista os aspectos arquitetônicos

dos centros urbanos das regiões

por onde ele passou; a logística de abertura

e formação das fazendas; as formas e

funcionalidade de suas benfeitorias; e a

maneira pela qual se desenhou e montou o

corpo ideal do cafeeiro (ao que os geneticistas

chamam de “arquitetura da planta”).

Assim, a arquitetura do café, composta

por remanescentes físicos e culturais em

todo o estado de São Paulo, permite a

condução de estudos objetivos sobre vários

aspectos das relações entre técnica e arquitetura.

Dependendo de como se conduz

uma pesquisa nesse campo, pode-se identificar

vários níveis daquilo que denominamos,

genericamente, de arquitetura do

café (ARGOLLO FERRÃO, 2004), quais

sejam:

• no nível regional, a arquitetura das regiões

produtoras de café, estabelecida conforme

uma lógica de ocupação dos espaços

geográficos e de planejamento urbano

bem definida, compatível com a evolução

da infra-estrutura de apoio à economia

cafeeira;

• no nível da propriedade, a arquitetura das

fazendas de café, em que os edifícios,

caminhos, parques, jardins, pomares,

plantações e criações foram concebidos

de acordo com padrões arquitetônicos

específicos e compatíveis com o modo

de produzir em cada sub-período do

ciclo cafeeiro;

• no nível do edifício e do maquinário, a

arquitetura do núcleo industrial das

fazendas, dada pela composição do

conjunto “terreiro, tulha, e casa das

máquinas”, em que o layout interno e

externo dos edifícios era planejado para

otimizar as operações de secagem e

beneficiamento do grão. Valoriza-se o

patrimônio cultural da engenharia e da

arquitetura manifesto em cada edifício

e em cada maquinário instalado no

núcleo industrial da fazenda;

• e, finalmente, no nível agro-ecológico, a

arquitetura do cafezal, em que o planejamento

da instalação e do manejo da

plantação é feito de maneira a protegêla

de fenômenos climáticos perniciosos,

facilitar os seus tratos culturais, e a racionalizar

a colheita, preparo e transporte

interno do produto. Ainda no nível agroecológico,

há também a própria arquitetura

do cafeeiro, representada pelo

trabalho de melhoramento genético, que

se preocupa em desenhar e consubstanciar

uma planta com formato,

tamanho, resistência de ramos e folhas,

inserção de flores e frutos, etc., capaz de

proporcionar alta produtividade, mecanização

das principais práticas agrícolas,

conforto para os trabalhadores

que a manejam, resistência às pragas e

doenças, etc.

AFigura 2 apresenta esquematicamente

os níveis de abordagem para o estudo sobre

142 VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X

André Munhoz de Arghollo Ferrâo

Arquitetura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de uma abordagem transdisciplinar...

arquitetura rural, a partir do que propusemos

para os estudos sobre a arquitetura do café.

Pode-se considerar 4 grandes níveis de

abordagem: o nível regional, composto

pela tipologia arquitetônica do conjunto de

unidades produtivas de uma dada região;

o nível da fazenda ou da unidade

produtiva, composto pela arquitetura do

núcleo industrial mais a arquitetura da(s)

lavoura(s); o nível do edifício, onde cada

edifício pode ser considerado o objeto de

estudo, assim como cada máquina, ou

ainda, o conjunto de máquinas abrigadas

em cada edifício; e finalmente, o nível agroecológico,

onde se estudaria a arquitetura

genética das plantas que compõem a

lavoura ou as lavouras enfocadas nas

unidades produtivas, como visto no caso

da arquitetura do café com o desenho do

cafeeiro e do cafezal.

VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X 143

André Munhoz de Arghollo Ferrâo

Arquitetura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de uma abordagem transdisciplinar...

Caracterizou-se a arquitetura rural cafeeira

a partir de cada elemento do seu

complexo produtivo, primeiro tomado

isoladamente e depois a partir de uma visão

integradora, incluindo todo o conjunto

arquitetônico da propriedade: a arquitetura

dos terreiros, tulhas e casas de máquinas;

os viveiros e casas de vegetação; a própria

arquitetura do cafezal, influenciada pela

evolução técnica do maquinário agrícola e

também pelas condições locais sócioeconômicas

e ecológicas; e, finalmente, os

edifícios e instalações destinados a abrigar

atividades complementares e suplementares

da fazenda (Argollo Ferrão, 2004).

5.MULTIFUNCIONALIDADE E MULTICULTURALIDADE:

O ESPAÇO DA

ARQUITETURA RURAL NO ÂMBITO

DAS PAISAGENS CULTURAIS BRASILEIRAS

A existência no Brasil, de um excelente

sistema de pesquisa e extensão rural foi

fundamental para o espetacular desenvolvimento

da agroindústria do País, ocorrido

ao longo do século XX. As unidades de

produção agrícola, como espaços produtivos

inseridos no contexto de um determinado

complexo agroindustrial, em geral

pertencem a uma cadeia específica. Até

recentemente não se concebia outra alternativa

para os proprietários rurais que não

fosse a utilização de suas terras como

unidades de produção agrícola (ou

agroindustrial para aqueles que conse-

Figura 2. Esquema de representaÇão dos níveis de abordagem dos estudos em arquitetura rural

guiam agregar valor aos seus produtos).

No entanto, desde o final da década de 1980,

e mais intensamente a partir do início da

década de 1990, o meio rural começou a ser

visto como cenário de negócios voltados

também para o lazer e o entretenimento.

No Brasil é crescente o interesse pelo

turismo rural. Diversas propriedades rurais

e municípios inteiros, dispersos pelas

várias regiões do Brasil vêm explorando de

maneira consciente e profissional este mercado

que tende a se expandir. Ainda há

muito que fazer no sentido de se valorizar

o maravilhoso e extremamente rico conjunto

formado pelas diversas e heterogêneas

paisagens culturais no Brasil. De fato, tratase

de um enfoque relativamente novo, e

mesmo entre acadêmicos e profissionais

dos ramos ligados à cultura, arquitetura e

empreendimentos civis, há que se alinhar

conceitos, construir uma linguagem, estabelecer

procedimentos de abordagem para

estudos, e consolidar um cabedal transdisciplinar

de conhecimentos afins.

A condução de estudos que permitam a

descrição das paisagens culturais de regiões

e sub-regiões, conjuntos de municípios

ou mesmo a de um único município,

contribui para a consolidação deste tema

dentro do contexto acadêmico, e conseqüentemente,

no âmbito da própria sociedade

brasileira, incluindo os setores públicos

e privados em suas diversas escalas e

níveis de atuação.

Nas regiões mais desenvolvidas do

Brasil as intensas transformações que

sofrem as paisagens rurais e urbanas

normalmente carecem de planejamento.

Muito mais fortes são as pressões sócioeconômicas

advindas de uma imensa

quan-tidade de trabalhadores sem terra e

de empresários rurais descapitalizados.

Este contexto conduz a uma lógica de

expansão urbana que considera o espaço

rural apenas como reserva para a voracidade

do mercado imobiliário.

Há portanto, um longo caminho a

percorrer para chegarmos, no Brasil, à

condição holandesa descrita por Vlassenrood

(2004). Segundo a autora, ao longo do

último século, toda a paisagem natural na

Holanda foi transformada em paisagem

cultural. O território holandês está completamente

urbanizado. O contraste entre

cidade e campo leva à idéia de que ambos

não se encontram em lados opostos, mas do

mesmo lado. Em cada caso as transformações

convergem para a integração de

papéis, respondendo à questão da possível

dicotomia entre expansão urbana e desenvolvimento

rural, preservando suas características

culturais e de paisagem.

Nos Estados Unidos, a preocupação

com um possível processo dicotômico

entre expansão urbana e desenvolvimento

rural se nota em algumas regiões desde a

década de 1950. Segundo Kostof (1989), os

economistas rurais foram os pioneiros no

estudo sobre as dinâmicas relações entre

cidade e campo a partir da compreensão da

intensa mistura de usos agrícolas e urbanos

do solo. Assim, caracterizou-se a chamada

região “rurbana” como uma área heterogênea

no que se refere ao uso do solo; que se

apresenta dispersa e com baixa densidade

de construções, contrastando com a paisagem

estritamente rural ou urbana.

O território brasileiro é muito grande, e

não se pretende comparar o seu contexto

com o de regiões desenvolvidas como a

Holanda, ou o norte da Itália. Por outro

lado, não se pretende sugerir que a

dinâmica da relação entre cidade e campo

nas regiões mais desenvolvidas do Brasil

possa ser comparada com a dinâmica norte

americana. Todavia é possível destacaremse

aspectos semelhantes tanto em relação

aos casos europeus, como em relação aos

casos norte americanos. Por isso mesmo, é

sempre importante a condução de estudos

144 VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X

André Munhoz de Arghollo Ferrâo

Arquitetura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de uma abordagem transdisciplinar...

que contribuam para a construção em

mosaico do mapa de paisagens culturais

brasileiras.

A crescente incorporação dos sistemas

de engenharia sobre o meio natural, e a

evolução dos sistemas de comunicação,

com a conseqüente conformação do

chamado “meio técnico-científico-informacional”,

proposto por Milton Santos

(1996), impedem que se estabeleça a

dissociação entre cidade e campo sem as

necessárias reflexões.

Toda atividade econômica contemporânea

demanda ciência e tecnologia,

podendo ser indistintamente aplicada ao

campo (com conhecimentos advindos da

cidade), ou à cidade (com conhecimentos

advindos do campo), modificando a

arquitetura dos sistemas espaciais “campo”

e “cidade”, contribuindo tanto para a

modelagem de um novo perfil rural como

para a pauta das discussões sobre os rumos

do desenvolvimento urbano sustentável.

Nesse sentido, o enfoque sistêmico e a

visão de processos sobre a arquitetura rural

levam a trabalhos que permitem a descrição

do potencial turístico baseado nas

paisagens culturais de regiões inteiras, subregiões,

ou municípios que tenham sofrido

forte influência de algum ciclo econômico

agro-industrial-comercial contextualizado

nas condições culturais locais, como por

exemplo, o ciclo cafeeiro (ARGOLLO

FERRÃO, 2003b). É possível descrever a

paisagem cultural e conseqüentemente o

potencial turístico baseado nos valores

culturais locais de cada município brasileiro.

Há no Brasil estudos de diversos autores

para quase todas as regiões do País.

O imenso patrimônio cultural rural,

repleto de fazendas centenárias, antigas

estruturas de engenharia, ícones da história

econômica e da história da técnica, além de

promover o turismo rural, o turismo

cultural e o turismo ecológico, alavanca o

chamado turismo de negócios, trazendo

para cidades do interior conven-ções,

congressos, encontros profissionais, eventos

acadêmicos de diversa índole, além das

chamadas excursões de demons-tração

para produtores rurais. As festas regionais

(da uva, do figo, das flores, etc., ver Tabela

1, apenas para citar algumas) são

tradicionais em todo o Brasil, muitas há

mais de 50 anos. As festas de peão, que se

transformaram num negócio milionário a

partir da incorporação do estilo country

(importado dos Estados Unidos), compõem

este cenário de irrefutável potencial

turístico baseado nas paisagens culturais

de determinadas regiões brasileiras

(ARGOLLO FERRÃO, 2003b).

VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X 145

André Munhoz de Arghollo Ferrâo

Arquitetura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de uma abordagem transdisciplinar...

Tabela 1. Algumas das principais festas típicas relacionadas a culturas locais de caráter rural no

estado de São Paulo (Brasil).

O idioma inglês possui uma expressão

com a qual se reconhece o significado das

relações entre determinadas festas de

tradição cultural e o local (município ou

região) onde elas ocorrem: event places.

Cada vez mais a capacidade de resgate e

valorização da memória, bem como de

transmissão da informação, que esses locais

com eventos associados possui tem chamado

a atenção de pesquisadores profissionais e

acadêmicos interessados em planejamento

regional (SABATÉ; FRENCHMAN &

SCHUSTER, 2004). Estudiosos ligados às

áreas de socio-logia, antropologia e

etnografia passam a conviver com o

interesse crescente de colegas de outras

áreas, como turismo, engenharia de empreendimentos,

arqui-tetura e urbanismo.

As possibilidades de novos negócios no

campo que o estudo sobre arquitetura rural

induz a visualizar, leva à necessidade de

caracterização desses negócios sob o enfoque

sistêmico. A multifuncionalidade do

campo tem sido objeto de interesse de

autores de diversas áreas do conhecimento.

De fato o campo parece estar sendo

reconhecido como cenário de mudanças

estruturais importantes, o que reforça a

importância do papel da arquitetura rural

como uma área de conhecimento transdisciplinar

fundamental para a valorização

do patrimônio cultural rural, não só no que

tange à restauração de edificações de valor

histórico (como antigos casarões, senzalas,

terreiros, tulhas e casas de máquinas,

engenhos, antigas pontes e estruturas de

engenharia, etc.), mas também no que se

refere à implantação (ou adequação) de

empreendimentos nos novos nichos de

negócio que vão surgindo no meio rural a

partir do reconhecimento da complexidade

de um contexto que nos dias de hoje

encontra-se em permanente estado de

mudança.

No Brasil, as margens “rurbanas”

podem ser reconhecidas nas regiões mais

desenvolvidas como áreas que passam por

um intenso processo de metropolização,

onde a zona rural pode rapidamente se

transformar num bairro populoso, muitas

vezes implantado sem infra-estrutura

urbana, e com muitas construções clandestinas.

O problema se agrava na medida em

que se aumenta a concentração de pessoas.

Alguns autores, preocupados com a

delimitação do espaço urbano e do espaço

rural, propõem como referência as atividades

dos moradores de um determinado

aglomerado em foco. Nesse sentido,

Graziano da Silva (2002) salienta a

distinção entre população rural (residente

na zona rural) e população agrícola

(pessoas que realmente se ocupam de

atividades agrícolas). O autor considera

inadequado relacionar as atividades

exercidas pela população (agrícola ou não

agrícola) para caracterizar o espaço onde

ela reside (rural ou urbano). Olga Tulik

(2003) procura discutir esta questão para

introduzir especialistas de outras áreas,

iniciantes e leigos interessados no estudo

sobre Turismo Rural. Ambos os autores

reconhecem como sendo uma das tendências

mais importantes da década de 1990 o

crescimento das atividades não agrícolas

nas áreas ditas rurais, verificada em países

desenvolvidos e na América Latina de

modo geral, particularmente no Brasil

(GRAZIANO DA SILVA, 2002; TULIK,

2003).

Em linhas gerais, por suas características

intrínsecas, o campo de estudos sobre

arquitetura rural é essencialmente transdisciplinar,

uma vez que em seu escopo apresentam-

se questões complexas como:

• as relações do sistema cidade-campo,

• as definições e delimitações dos espaços

rural e urbano,

• o reconhecimento da tendência de

consolidação dos aspectos de multifuncionalidade

das propriedades rurais,

• a necessidade de se projetar e construir

para atividades específicas de uma

agricultura moderna,

• a necessidade de se projetar e construir

para pequenas e médias propriedades

146 VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X

André Munhoz de Arghollo Ferrâo

Arquitetura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de uma abordagem transdisciplinar...

rurais administradas por uma família e

seus agregados.

Finalmente, cabe deixar explícito que o

papel da arquitetura rural torna-se cada vez

mais importante na medida em que cresce

o debate sobre a delimitação do espaço

rural e do espaço urbano, e também, na

medida em que se percebe que não se pode

continuar esse processo desordenado de

ocupação do território. Da integração entre

o meio natural e os sistemas geradores de

ciência e informação de que se compõem as

nações modernas, configura-se o ambiente

construído, rural e urbano, ou, o chamado

“meio técnico-científico-informacional”, o que

permite dizer que sua arquitetura encontrase

intimamente relacionada com o seu

sistema tecnológico, trazendo à tona a

importância que se deve dar ao binômio

cidade-campo no âmbito dos processos que

se desenrolam num dado território.

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